Cadernos de Saúde Pública
ISSN 1678-4464
33 nº.2
Rio de Janeiro, Fevereiro 2017
ARTIGO
Fatores associados à violência contra mulheres profissionais do sexo de dez cidades brasileiras
Francisca Sueli da Silva Lima, Edgar Merchán-Hamann, Margarita Urdaneta, Giseli Nogueira Damacena, Célia Landmann Szwarcwald
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311X00157815
Profissionais do Sexo; Violência no Trabalho; Violência Contra a Mulher; HIV
Introdução
Embora a violência baseada no gênero seja reconhecida e discutida há décadas como um problema global de saúde pública e de direitos humanos, que causa altas taxas de morbidade e mortalidade de mulheres em todo o mundo, raramente são incluídos nestas discussões violações de direitos e abusos vivenciados por mulheres profissionais do sexo. Além de sofrerem violência em suas vidas privadas, essas mulheres são vulneráveis à violência advinda das especificidades da atividade, percebida pela sociedade como ilícita, sendo estigmatizadas e sociopoliticamente marginalizadas 1.
A violência contra as mulheres profissionais do sexo não é desvinculada da violência contra a mulher, ancorada, sobretudo, na desigualdade de gênero, na qual se destaca o patriarcado, as relações de poder e as construções hierárquicas da masculinidade e feminilidade como motor predominante e generalizado do problema. Além disso, o fardo imposto pelo estigma e estereótipos construídos historicamente e atribuídos às prostitutas perpetuam as mais diversas expressões de violência vivenciadas por essas mulheres no seu cotidiano, desde insultos a assassinatos 2.
Em tempos mais recentes, impulsionado principalmente por possíveis associações da violência com as doenças sexualmente transmissíveis, especialmente o HIV, vem surgindo um interesse maior dos pesquisadores no que diz respeito à natureza e extensão da violência contra a mulheres profissionais do sexo, o que tem resultado em um número crescente de estudos em todo o mundo. O foco da maioria dessas pesquisas está no potencial de transmissão dessas infecções das mulheres profissionais do sexo para clientes e parceiros e, consequentemente, para a disseminação das doenças para a população em geral 3.
Essa realidade tem alimentado um crescente interesse mundial na prevenção e no combate à violência contra as profissionais do sexo. Assim, especialmente nas últimas décadas, a produção científica vem se aproximando das múltiplas dimensões e das diversas faces da violência presentes no universo do comércio sexual, em seus distintos contextos históricos e sociais. Os estudos têm demonstrado que a extensão e natureza da violência vivenciada por essas mulheres são diversificadas e entrelaçadas por um conjunto de fatores relacionados ao mercado do sexo, que se entrecruzam com fatores macroestruturais, próprios do Estado e de instituições que reproduzem as condições geradoras da violência, como a criminalização do trabalho sexual 4.
Uma revisão da literatura mundial 5 sobre violência contra a mulheres profissionais do sexo evidenciou que a prevalência na vida de qualquer violência combinada com a violência no local de trabalho variou de 45% a 75% e, em relação ao ano anterior à pesquisa, foi de 32% a 55%.
No Brasil, há um limitado número de trabalhos epidemiológicos sobre violência contra a mulheres profissionais do sexo. Estudos descritivos quantitativos realizados em municípios do Nordeste apresentaram resultados compatíveis com a literatura quanto à alta carga de abusos contra as mulheres profissionais do sexo. Ximenes Neto et al. 6, em investigação realizada com mulheres profissionais do sexo de Sobral, Ceará, observaram que 30% haviam sofrido violência física; 12,5% violência sexual; e 10% violência psicológica. Em Picos, Piauí, Penha et al. 7 evidenciaram que 60,5% das mulheres profissionais do sexo participantes de seu estudo relataram violência psicológica; 30,2% violência física; e 3,2% violência sexual.
Frente a esse contexto, o presente trabalho objetiva estimar a prevalência de violência contra as mulheres profissionais do sexo em dez cidades brasileiras, segundo a natureza e os perpetradores, além de identificar os fatores associados a essa violência.
Método
Foi realizado um estudo transversal, com base em dados referentes a 2.523 questionários preenchidos por mulheres profissionais do sexo de dez cidades brasileiras (Brasília, Rio de Janeiro, Salvador, Santos, Itajaí, Belo Horizonte, Manaus, Recife, Curitiba e Campo Grande) que participaram, entre agosto de 2008 e julho de 2009, de um estudo denominado Corrente da Saúde, do Departamento de Doenças Sexualmente Transmissíveis/AIDS e Hepatites Virais do Ministério da Saúde (DDST/AIDS), cujo objetivo foi estimar as taxas de prevalência de HIV e sífilis e estabelecer o conhecimento, as atitudes e as práticas relacionadas à infecção pelo HIV e outras doenças sexualmente transmissíveis.
As cidades foram selecionadas pelo DDST/AIDS, em função da localização geográfica e da magnitude da epidemia de HIV/AIDS. A amostragem foi proporcional à população de mulheres profissionais do sexo de cada cidade, com tamanho mínimo estabelecido de 100 mulheres. O tamanho foi calculado com base em uma estimativa de prevalência de HIV em mulheres profissionais do sexo de 6%, com intervalo de 95% de confiança (IC95%), erro bicaudal de 1,3%, erro I de p < 0,05 e efeito de desenho de 2 8.
As mulheres profissionais do sexo foram recrutadas por meio do método "amostragem conduzida pelos participantes" (respondent-driven sampling - RDS), idealizado por Heckathorn 9. Esse método é uma variante das amostragens baseadas em cadeia, que assumem que os componentes de uma população de difícil acesso são mais facilmente recrutados por seus pares. Um modelo matemático é utilizado para ponderar a amostra e compensar o viés de seleção (não aleatória) dos indivíduos, bem como a super-representação de alguns subgrupos da população em estudo, pressupondo-se que a amostra final é representativa do grupo de convívio ou da rede em que as pessoas estão inseridas.
Em cada cidade, foram escolhidas de cinco a dez participantes iniciais, denominadas de "sementes". A escolha não foi aleatória, a fim de incluir mulheres profissionais do sexo de diferentes características sociodemográficas e de ambientes de trabalho externo (ponto de rua) e interno (boate, bordel, casa de massagem, hotel etc.). Cada semente recebeu três cupons para convidar mulheres conhecidas, que constituíram a primeira "onda" do estudo, as quais, por sua vez, recrutaram outros pares, e assim sucessivamente, até que se atingisse o tamanho da amostra estipulado. Assim, a amostra foi constituída em sucessivos ciclos ou ondas de recrutamento, em cada cidade do estudo.
A coleta dos dados deu-se por autopreenchimento de questionário em audio computer-assisted self-interview, em computadores equipados com fones de ouvidos, com os quais as mulheres profissionais do sexo liam e/ou ouviam as perguntas e as opções de respostas em privacidade. No caso de eventuais dúvidas havia um membro da equipe de pesquisa para os esclarecimentos.
O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética da Fundação Oswaldo Cruz sob o nº 395-07. Publicações anteriores apresentam os pressupostos do método, a proposição de análise dos dados coletados e detalham o processo com o RDS nas dez cidades brasileiras 8,10.
A análise do presente trabalho refere-se às questões do módulo de "Discriminação e Violência". A seleção das variáveis foi realizada com base nas evidências identificadas na literatura e consensos do Ministério da Saúde. A ocorrência de violência foi o desfecho, valendo-se do qual foram estabelecidos cruzamentos com fatores sociodemográficos (idade, escolaridade, raça/cor, renda mensal); tipo de inserção no comércio sexual, aferido como o local de trabalho - ponto de rua ou ambiente de trabalho interno; preço cobrado por programa; status sorológico para HIV com base nos resultados dos testes rápidos realizados na pesquisa; práticas de sexo seguro (uso inconsistente de preservativo definido como o não uso em qualquer tipo de prática sexual e com qualquer tipo de parceiro); e uso de álcool e de outras drogas. Nas análises multivariadas, a renda foi substituída por valor do programa devido à colinearidade.
Os desfechos analisados foram: violência verbal; violência física por qualquer agressor, por parceiro íntimo, por cliente, por familiar e por policial, nos últimos 12 meses. Referente à violência sexual apenas estimou-se a prevalência, não foi incluída no plano de análises em razão da questão investigativa referir-se apenas a "alguma vez na vida", o que impossibilita identificar a ocorrência relacionada ao trabalho sexual, além de não ter identificado o agressor, diferindo, portanto, dos demais tipos de violência analisados.
Para a análise foram usados métodos estatísticos apropriados para os dados coletados, utilizando um desenho amostral complexo. Para tanto, levou-se em consideração a dependência entre as observações resultantes do recrutamento em cadeia e as probabilidades desiguais de seleção, que resultam dos diferentes tamanhos de redes de cada participante 8. Os autores originais de RDS propõem uma ponderação baseada na probabilidade de seleção inversamente proporcional ao tamanho da rede de cada participante. Neste estudo, a questão usada para medir o tamanho da rede de cada participante e para a ponderação foi: "Quantas mulheres profissionais do sexo que trabalham aqui na cidade você conhece e que conhecem você pessoalmente?"', sob a hipótese de que o recrutamento no método RDS segue um processo de Markov, no qual as relações de recrutamento são determinadas pelo recrutamento direto, e não por membros do recrutador de ondas anteriores. Além disso, como a pesquisa foi realizada em dez cidades, a amostra foi ponderada pelo tamanho da população de mulheres de 18 a 59 anos de idade em cada local, assumindo a mesma proporção de mulheres trabalhadoras do sexo em todos os locais, e considerando cada cidade como um estrato 8.
Para o plano de análises bivariadas utilizou-se a prevalência como medida de frequência e a razão de prevalência como medida de associação, considerando os IC95%. Um valor de p < 0,05 foi considerado significativo.
Os modelos de regressão logística não hierarquizada foram construídos para ajustar o efeito de fatores de confusão entre aqueles identificados como significativos nas análises bivariadas ou relevantes para o problema do estudo. Além disso, foi realizado o controle do efeito homofilia (tendência de uma pessoa selecionada para o estudo recrutar indivíduos com características semelhantes a ela), por meio da inclusão, entre as variáveis independentes, da variável de desfecho correspondente à da recrutadora.
O software utilizado para as análises foi o SPSS (SPSS Inc., Chigaco, Estados Unidos), já com o banco de dados devidamente ponderado, considerando a amostragem complexa e adequada à técnica RDS.
Resultados
Das 2.523 mulheres profissionais do sexo participantes do estudo, 54% tinham de 18 a 29 anos de idade. O nível de escolaridade foi baixo: 59,2% não completaram o Ensino Fundamental; 76,1% se declararam não brancas; 79,6% referiram não estar casadas ou vivendo com companheiro; 45% disseram ter renda mensal inferior a R$ 600,00; somente 34,2% possuíam casa própria; e 35,4% referiram outro trabalho além do sexual
A maioria (58%) informou ter tido sua primeira relação sexual com até 15 anos de idade: 44,6% entre 13 e 15 anos; e 13,4% com menos de 12. Quanto ao tempo como profissional do sexo, 37,5% referiram ter até três anos na atividade.
Tabela 1 Características sociodemográficas das mulheres profissionais do sexo de dez cidades brasileiras. Brasil, 2009.
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No que se refere ao local de trabalho como profissional do sexo, a maioria (61,3%) informou trabalhar em locais fechados (bar, boate, hotel/motel) e 38,7% referiram trabalhar em ponto de rua. Quanto ao preço cobrado por programa, a maioria (58,1%) cobrava entre R$ 1,00 e R$ 49,00; e 77,2% referiram fazer entre um e cinco programas por dia. No que diz respeito ao uso de álcool e de drogas, 73,7% referiram consumir álcool e 30,9% usaram drogas como maconha, cocaína, crack, merla etc.
Tabela 2 Características do trabalho sexual e uso de álcool e drogas entre mulheres profissionais do sexo de dez cidades brasileiras. Brasil, 2009.
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Prevalência de discriminação e violência e fatores associados
Neste trabalho, a maioria das mulheres (66,4%) se sentiu discriminada nos 12 meses anteriores ao estudo e os principais motivos referidos foram: discriminação pela profissão e falta de dinheiro ou condição social; 59,5% referiram violência verbal; 38,1% relataram violência física por qualquer agressor. Violência física por parceiro íntimo foi referida por 25,2%; por familiar/conhecido 16,6%; por cliente 11,7%; e por policial 7,9%. Violência sexual alguma vez na vida foi relatada por 37,8% das mulheres profissionais do sexo.
Violência verbal
Na análise multivariada, a violência verbal foi associada com o baixo valor do programa até R$ 29,00 (ORa = 2,16; IC95%: 1,52-3,08), consumo de drogas e de álcool, idade de 18 a 29 e de 30 a 39 anos
Tabela 3 Análises bivariada e multivariada dos fatores associados à violência verbal e violência física por qualquer agressor contra mulheres profissionais do sexo de dez cidades brasileiras. Brasil, 2009.
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Violência física
A violência física esteve associada com idade de 18 a 29 anos (ORa = 2,27; IC95%: 1,56-3,29), uso de drogas (ORa = 2,02; IC95%: 1,54-2,65), além do consumo de álcool, baixa escolaridade e cor preta
Perpetradores de violência física
Os parceiros íntimos foram os principais agressores das mulheres profissionais do sexo. A violência física por parceiro íntimo esteve associada com o uso inconsistente do preservativo em qualquer situação (ORa = 1,99; IC95%: 1,27-3,11), idade de 18 a 29 anos (ORa = 1,92; IC95%: 1,23-2,99), além da idade de 30 a 39 anos, consumo de drogas e de álcool
Tabela 4 Análises bivariada e multivariada dos fatores associados à violência física perpetrada por parceiros íntimos e familiares contra mulheres profissionais do sexo de dez cidades brasileiras. Brasil, 2009.
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Os fatores associados aos abusos físicos cometidos por familiares/conhecidos foram: idade de 18 a 29 anos (ORa = 2,80; IC95%: 1-71-4,61), consumo de drogas (ORa = 1,72; IC95%: 1,21-2,43) e ter baixa escolaridade (ORa = 1,62; IC95%: 1,11-2,36), além de ter sido identificada associação com idade de 30 a 39 anos
A violência física cometida por clientes foi associada com a idade de 18 a 29 anos (ORa = 2,24; IC95%: 1,24-3,75), valor do programa até R$ 29,00 (ORa = 2,09; IC95%: 1,29-3,38), trabalhar nas ruas (ORa = 1,86; IC95%: 1,31-2,66), consumo de álcool (ORa = 1,57; IC95%: 1,19-2,06) e uso de drogas (ORa = 1,47; IC95%: 1,02-2,01)
A violência física perpetrada por policiais esteve associada com o uso de drogas (ORa = 2,54; IC95%: 1,61-3,99), baixa escolaridade (ORa = 2,21; IC95%: 1,34-3,51), trabalhar nas ruas (ORa = 1,80; IC95%: 1,15-2,82), além da idade de 18 a 29 anos (ORa = 2,03; IC95%: 1,09-3,79)
Tabela 5 Análises bivariada e multivariada dos fatores associados à violência física perpetrada por clientes e policiais contra mulheres profissionais do sexo de dez cidades brasileiras. Brasil, 2009.
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Discussão
A maioria das mulheres profissionais do sexo participantes deste estudo se autorreferiu como parda e negra, jovem, solteira, com baixo nível de escolaridade e baixo poder aquisitivo. Mais de um terço comercializava o sexo nas ruas e trabalhava no comércio sexual por até três anos. Perfil semelhante foi observado por Kerrigan et al. 11 em outro estudo realizado com profissionais do sexo no Rio de Janeiro.
Os constituintes estruturais desse perfil, arraigados nas desigualdades de gênero e de classe social, refletem a violação de direitos humanos fundamentais e, assim, aumentam a vulnerabilidade dessas mulheres à violência, pois as marginalizam, limitam as suas oportunidades e a capacidade de reduzir os riscos decorrentes da atividade sexual, incluindo a infecção pelo HIV. Um crescente número de estudos vem demonstrando a confluência de fatores estruturais e riscos indiretos 5,12,13.
Um estudo sobre a prevalência de violência de gênero contra mulheres profissionais do sexo que trabalhavam nas ruas em Vancouver, Canadá, constatou que 57% sofreram violência e que esta foi correlacionada diretamente com fatores macroestruturais: falta de moradia, criminalização do trabalho sexual, dificuldade de acesso a tratamento para toxicodependentes. Os autores observaram que esses fatores macroestruturais levam a práticas de risco individuais, como: atender a clientes em carros ou espaços públicos; se deslocar para áreas longe das ruas principais em razão do policiamento e do uso de drogas; entre outros 14.
Consistentes com dados da literatura, os resultados do presente trabalho evidenciam a pluralidade de fatores relacionados às vivências de violência das mulheres profissionais do sexo nas dez cidades brasileiras. Em todas as formas de violências investigadas, os fatores socioestruturais e individuais estiveram associados, variando a força da associação de cada um com o tipo de violência e de agressor. Nas análises multivariadas, o uso de drogas mostrou a maior força de associação e de significância estatística com os tipos de violência investigados (verbal e física) e com todos os perpetradores (parceiros íntimos, familiares/conhecidos, clientes e policiais). O uso de álcool mostrou um padrão de associação e de significância semelhante, exceto para violência perpetrada por familiar/conhecido e por policial.
Outros trabalhos 5,15 evidenciaram que o uso dessas substâncias combinado com a estigmatização e a criminalização do trabalho sexual atuam na conformação de cenários de risco acrescido, que propiciam a violência no contexto do comércio sexual. Impõem, ao mesmo tempo, vulnerabilidades diversas marcando perversamente todas as formas de violência direcionadas às mulheres profissionais do sexo.
Neste trabalho, a maioria das mulheres se sentiu discriminada nos 12 meses anteriores ao estudo e os principais motivos referidos foram: discriminação pela profissão e falta de dinheiro ou condição social. Mais da metade foi agredida verbalmente e mais de um terço sofreu abuso físico, tanto no ambiente do trabalho sexual - por clientes e policiais - como no âmbito doméstico, por parceiros íntimos e familiares ou conhecidos. Esses resultados ratificam os de outros estudos, como os de Pando et al. 16 e Kerrigan et al. 11 que reportaram achados de que 25,9% das mulheres profissionais do sexo do Rio de Janeiro foram discriminadas e 15,8% sofreram violência relacionada ao trabalho sexual, nos quatro meses anteriores à pesquisa.
Os resultados do presente estudo demonstram a carga desproporcional de violência vivenciada pelas mulheres profissionais do sexo no contexto brasileiro. Na população geral, de acordo com os resultados da Pesquisa Nacional de Saúde 2013 (PNS), a prevalência de qualquer violência contra mulheres cometida por desconhecidos, nos últimos 12 meses, foi de 2,7%; e por conhecidos (inclui cônjuge, namorado, parceiro íntimo e outros familiares) foi de 3,1% 17. A prevalência dessas ocorrências na população do presente trabalho foi muito superior à encontrada entre as mulheres da população geral - apenas para a violência física, a prevalência entre mulheres profissionais do sexo variou de 7,9%, para violência cometida por policial, até 25,2%, por parceiro íntimo - o que demonstra a maior vulnerabilidade das mulheres profissionais do sexo à violência.
Neste estudo, foram identificados como fatores associados à violência verbal e física: idade jovem (mulheres com menos de 30 anos); baixa renda; consumo de álcool e de drogas; uso inconsistente do preservativo em qualquer situação; e valor do programa até R$ 29,00. Além desses, para a violência física foi encontrada associação com baixa escolaridade e raça/cor preta. Esses fatores também foram identificados em outros estudos como preditores de violência (física, sexual e psicológica) contra as mulheres profissionais do sexo 18.
O uso de álcool e de drogas é apontado como um dos mais importantes marcadores de risco para o aumento da violência contra as mulheres profissionais do sexo, nos mais distintos contextos de comércio sexual, pois a necessidade de aquisição destas substâncias, bem como o uso compartilhado com parceiros sexuais (íntimos e clientes) condicionam estas mulheres às mais diversas situações de exposição e de vivências de violência e, consequentemente, também a práticas sexuais não seguras, fato que leva à associação da violência com o risco de infecção pelo HIV e outras doenças sexualmente transmissíveis 19,20,21,22.
Já em relação aos agressores, os parceiros íntimos (não pagantes) foram os principais perpetradores de agressão física contra as mulheres profissionais do sexo deste estudo, demonstrando o papel de relevo destes homens como perpetuadores da violência contra as mulheres. Daí a importância de se direcionar o olhar em relação à violência contra as mulheres profissionais do sexo para além daquela cometida pelos clientes. Nas análises multivariadas, o consumo de álcool e de drogas; o uso inconsistente de preservativo em qualquer situação; e as faixas etárias de 18 a 29 e de 30 a 39 anos foram associados de forma significativa com a violência cometida por parceiro íntimo.
Os preditores de violência perpetrada por parceiros íntimos contra as mulheres profissionais do sexo deste estudo são consistentes com os achados da literatura, no que diz respeito à violência contra as mulheres em geral. As prevalências maiores entre mulheres mais jovens, com baixa escolaridade, baixa renda mensal e usuárias de álcool foram identificadas em outros trabalhos 23,24. A presença de fatores estruturais e o consumo de álcool e de drogas muitas vezes se entrelaçam nessas relações, produzindo conflitos e favorecendo ainda mais o controle dos homens sobre as mulheres, inclusive por meio de comportamentos violentos. Uma revisão da literatura que investigou a sindemia do abuso de substâncias, violência e HIV/AIDS em mulheres nos Estados Unidos, revelou que 76% daquelas que relataram agressão física e estupro na idade adulta foram vítimas de seus parceiros íntimos 25.
Além disso, a violência por parceiro íntimo é um reconhecido fator de vulnerabilidade ao HIV para as mulheres profissionais do sexo, especialmente entre as mais jovens, as que sofrem agressões graves e aquelas que estão envolvidas com drogas. Portanto, é tão importante quanto a violência cometida por clientes 26,27.
A violência física cometida por familiares foi a segunda mais referida pelas mulheres profissionais do sexo deste estudo, e os fatores relacionados coincidem com os mesmos associados à violência física cometida por parceiro íntimo (exceto uso de álcool), o que denota a magnitude da violência contra as mulheres profissionais do sexo no contexto doméstico.
Nessas relações, além das normas e desigualdades de gênero, os motivos que reforçam parceiros e familiares a violentarem essas mulheres são ambíguos e contraditórios entre si: as mulheres são agredidas para trazerem o dinheiro para o sustento de outros e, ao mesmo tempo, são punidas por se prostituírem e se relacionarem sexualmente com outros homens a fim de prover tal sustento.
Autores como Wechsberg et al. 28 observaram que as mulheres profissionais do sexo sul-africanas, principalmente jovens e envolvidas com drogas, dependiam do trabalho sexual como a principal fonte de renda, inclusive para apoiarem outros membros da família. Essas mulheres relataram agressões por parte de homens - clientes, namorados, parceiros e familiares - e referiram grande medo de futura vitimização.
No Brasil, em que pese o limitado número de estudos que abordam a violência doméstica no contexto das trabalhadoras do sexo, alguns estudos quantitativos descritivos demonstraram a alta carga de violência que sofrem as mulheres profissionais do sexo em seus recintos domiciliares. Uma pesquisa realizada com profissionais do sexo em Fortaleza, Ceará, identificou que 47,6% das mulheres foram vítimas de algum tipo de violência no domicílio, e 40,5% vivenciaram abusos no ambiente de trabalho 29.
No presente estudo, os clientes foram identificados como autores de violência física por 11,7% das mulheres profissionais do sexo entrevistadas. Nas análises multivariadas houve associação com idade, trabalho nas ruas, baixo valor do programa, uso de álcool e de drogas.
Dentre esses fatores, se destacam o uso de álcool e de drogas. No contexto do trabalho sexual, o uso dessas substâncias é visto por muitas mulheres profissionais do sexo como um meio de conseguir maior rendimento e interação com os clientes, e ao mesmo tempo é um mecanismo de fuga do próprio trabalho e do estigma a ele associado. No entanto, o uso de substâncias é identificado como um marcador de risco importante para a violência perpetrada por clientes 30,31. Shannon et al. 20 evidenciaram que o compartilhamento de drogas ilícitas entre mulheres profissionais do sexo e seus clientes está associado com violência e práticas sexuais de risco: assédio verbal, físico e/ou agressão sexual (ORa = 2,71; IC95%: 1,17-6,32; p = 0,021) e práticas sexuais de risco (ORa = 3,17; IC95%: 1,48-6,77; p < 0,003).
Quanto à associação com o trabalho nas ruas, muitos estudos apontam o ambiente de rua como um fator que aumenta a violência cometida por clientes contra as mulheres profissionais do sexo, além da intrínseca relação com o consumo de drogas 14. Embora a violência contra essas mulheres ocorra também em espaços de trabalho fechados, a extensão e a natureza diferem e são influenciadas por uma pluralidade de fatores de risco e circunstâncias de vulnerabilidades dentro dessas configurações.
Uma revisão sistemática 5 sobre violência contra mulheres profissionais do sexo no mundo examinou o papel do ambiente de trabalho sexual em promover ou reduzir o risco de violência, e constatou que na Índia as mulheres profissionais do sexo que trabalhavam em suas próprias casas eram menos propensas a experimentar violência sexual por parte de clientes do que as que trabalhavam em bordéis, alojamentos, ou em locais públicos; na Grã-Bretanha, as mulheres profissionais do sexo que trabalhavam ao ar livre tinham seis vezes mais chances de sofrer violência pelos clientes do que as que trabalhavam em ambientes internos; no Canadá, mulheres profissionais do sexo que atendiam clientes em carros ou lugares públicos foram mais propensas a vivenciar violência do que as que atendiam em ambientes internos.
Já em relação à violência física cometida pela polícia, no presente estudo, ela foi referida por 7,9% das mulheres profissionais do sexo. Nas análises multivariadas esse tipo de violência esteve associado com baixa escolaridade; trabalho nas ruas; e uso de drogas.
Esses resultados estão de acordo com a literatura. Uma revisão sistemática 5 constatou que 6,6% das mulheres profissionais do sexo da Índia que sofreram violência no ano anterior foram estupradas pela polícia; na Rússia, mulheres profissionais do sexo que trabalhavam nas ruas foram mais propensas a sofrer violência sexual cometida por policiais. Além disso, demonstrou que as práticas de policiamento consequentes da criminalização do trabalho sexual (prisão, coerção, suborno, invasão de local de trabalho) foram associadas com o aumento da violência física e sexual cometida por clientes contra as mulheres profissionais do sexo em diferentes países, como Grã-Bretanha, Canadá e Índia.
A violência policial contra mulheres profissionais do sexo é um fenômeno mundial e ocorre tanto onde o trabalho sexual é criminalizado quanto onde é legalizado. Estudos diversos associam a violência cometida pela polícia contra mulheres profissionais do sexo com o uso de drogas e de álcool e com o comércio sexual nas ruas. A confluência desses fatores tornam as mulheres mais vulneráveis a esse tipo de violência 32,33.
No Brasil, o relatório sistematizado da Rede Nacional de Prostitutas apresentou as violações dos direitos humanos mais recorrentes vivenciadas por mulheres profissionais do sexo e apontou como frequentes, em todas as regiões do Brasil, a violência policial, que inclui extorsão, assédio, expulsão dos espaços públicos, violações no local de trabalho, incluindo multas excessivas 34. Esses relatos demonstram que os abusos policiais agregam mais elementos de vitimização no universo do trabalho sexual e contribui para coibir as mulheres de denunciar clientes agressores e outros.
De acordo com Shannon et al. 12 somente a eliminação da violência sexual, em regiões com alta prevalência de HIV entre as mulheres profissionais do sexo, evitaria 17% de infecção no Quênia e 20% no Canadá, por meio do seu efeito imediato e sustentado no uso do preservativo entre mulheres profissionais do sexo e seus clientes na próxima década. Além disso, a descriminalização do trabalho sexual teria o maior efeito sobre o curso da epidemia de HIV em todas as configurações, evitando 33-46% das infecções por HIV na próxima década.
Conclusão
Os resultados ora apresentados e discutidos são uma fração limitada da realidade vivenciada pelas mulheres profissionais do sexo de dez cidades brasileiras, considerando que as análises foram feitas com base em respostas sobre práticas sexuais que são estigmatizadas e experiência de violência. A primeira, suscetível ao viés de desejabilidade social, quando há uma tendência do entrevistado a responder da forma que considera ser "bem visto" 35, e a segunda, à própria percepção de violência. Mesmo com a presença de um pesquisador para esclarecer eventuais dúvidas, há possibilidades de incompreensões decorrentes da subjetividade envolvida na percepção da violência. No Brasil, um estudo com mulheres profissionais do sexo evidenciou que estas só se consideravam vítimas de violência se as lesões que sofreram foram graves o suficiente para necessitar de tratamento hospitalar 36.
Além disso, as limitações próprias dos estudos transversais, especialmente o viés de prevalência, podem ter subestimado a frequência de violência nesse segmento de mulheres. Ainda, as estimativas de prevalência podem ser imprecisas por conta do RDS não conseguir atingir toda diversidade de mulheres profissionais do sexo, principalmente nos municípios em que o número da amostra foi menor.
No entanto, este estudo pode contribuir para o conhecimento e compreensão dos fatores associados, natureza e perpetradores da violência contra mulheres profissionais do sexo no contexto brasileiro, a partir da identificação de fatores estruturais, do ambiente de trabalho e individuais como prováveis preditores dos diversos tipos de abusos contra as mulheres profissionais do sexo e, consequentemente, corroborar para o entendimento da associação entre as vivências de violência e exposição ao risco de infecção por HIV nesse grupo específico de mulheres.
Esses achados denotam que a violência contra as mulheres profissionais do sexo pode ser aumentada pela confluência e sobreposição de fatores de exclusão e estigmatizantes, que se intercruzam e estão intrinsecamente relacionados às desigualdades de gênero e social, e ao próprio trabalho sexual, que é antagônico às normas sociais. Sejam esses fatores de caráter macroestrutural ou de natureza individual, tais como: pobreza, baixa escolaridade, dependência de álcool e de drogas. Os fatores identificados neste estudo são apontados por outros trabalhos como preditores da violência contra as mulheres profissionais do sexo 12,33,34. As diferenças na magnitude dos fatores, do tipo de violência e de agressor podem ser atribuídas aos contextos econômicos, sociais, culturais e políticos, bem como aos métodos utilizados nas diversas investigações.
Essas evidências da alta carga de violência vivenciada por mulheres profissionais do sexo nas mais diversas realidades demonstram que estas mulheres, em qualquer contexto, são vitimizadas pela violência e, portanto, mais vulneráveis ao HIV, e evidenciam a necessidade de identificar e abordar os fatores econômicos e socioculturais, bem como as desigualdades de gênero, que promovem uma cultura de violência contra a mulher em todo o mundo. Todos esses fenômenos são multifacetados com raízes histórico-socioculturais que perpassam por questões de classe, étnico-raciais e de geração, e necessitam ser compreendidos de forma multidimensional, a fim de serem enfrentados na complexidade dos fatores instigadores da violência nos diversos contextos do trabalho sexual.
Esses resultados ainda levam à reflexão sobre o papel do Estado brasileiro na proteção dos seus cidadãos que passa pela formulação de políticas e que, mesmo em situações singulares e em contextos polêmicos, garantam o usufruto dos direitos fundamentais consagrados na Constituição. Questiona-se então se as mulheres profissionais do sexo têm seus direitos garantidos por parte do Estado laico, independentemente de pressões de segmentos sociais que propugnam pela proibição do comércio sexual.
Agradecimentos
Agradecemos ao Ministério da Saúde, Departamento de DST/AIDS, à Dra. Alcinda Maria Godói e, em especial, a todas as mulheres profissionais do sexo das cidades de Brasília, Rio de Janeiro, Salvador, Belo Horizonte, Santos, Itajaí, Manaus, Recife, Curitiba e Campo Grande, que participaram do projeto Corrente da Saúde e tornaram possível este estudo. À Cooperação internacional do Ministério da Saúde e Nações Unidas Drogas e Crime UNODC (TC/CFA/CSV- 239/2007).
Referências
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