Cadernos de Saúde Pública
ISSN 1678-4464
33 nº.2
Rio de Janeiro, Fevereiro 2017
EDITORIAL
Autonomia individual vs. proteção coletiva: a não-vacinação infantil entre camadas de maior renda/escolaridade como desafio para a saúde pública
Jorge Alberto Bernstein Iriart
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311X00012717
Apesar de a vacinação ser mundialmente reconhecida por autoridades sanitárias e comunidade médica como uma importante intervenção preventiva com impacto na redução da morbimortalidade de doenças imunopreveníveis (a exemplo da erradicação da varíola e significativa redução dos casos de poliomielite no mundo), a disseminação de hesitação e resistência às vacinas entre pessoas de alta renda e escolaridade tem se tornado uma questão relevante para a saúde pública em vários países 1,2.
No Brasil, o Programa Nacional de Imunizações (PNI), criado na década de 1970, alcançou altos níveis de cobertura vacinal, levando à eliminação da poliomielite no país em 1989 e ao controle de várias doenças como o sarampo, tétano neonatal, difteria, tétano acidental e coqueluche 3. Estudos recentes de cobertura vacinal infantil, no entanto, também têm apontado para uma diminuição da taxa de vacinação nos estratos socioeconômicos mais elevados 4.
Nesse contexto, observa-se a reemergência de doenças antes controladas, a exemplo dos surtos de sarampo que atingiram a Califórnia, Estados Unidos, em 2014 1 e que têm se intensificado no Brasil desde 2011 5.
Pesquisadores, sobretudo na perspectiva das Ciências Sociais, têm buscado compreender as causas da não-vacinação, partindo do pressuposto de que estas têm íntima relação com o contexto cultural, com as diferentes percepções de risco e sua relação com a desigualdade social e solidariedade. A decisão de vacinar ou não os filhos, expõe a tensão entre o individual e o coletivo. Por conta do efeito biológico da imunidade de grupo, que reduz a incidência e a taxa de transmissão de doenças em uma dada população, a vacinação protege também aqueles que não se vacinaram. Na contemporaneidade, caracterizada pelo crescente individualismo, demanda por autonomia, liberdade de escolha e aversão ao risco, a saúde passa a ser pensada como uma questão de responsabilidade individual. A mídia, sobretudo a Internet, tem se tornado cada vez mais uma fonte de informação utilizada pelas pessoas para tomar suas decisões em relação à saúde. Por outro lado, pesquisadores na Europa apontam a desconfiança em médicos, fontes governamentais e indústria farmacêutica como razões para a hesitação com relação à vacinação 1.
A erosão da confiança pública nas instituições envolvidas com a vacinação não poupa também a ciência, por conta da preocupação com a possível interferência ou manipulação por interesses comerciais, o que compromete a possibilidade de suscitar políticas públicas solidamente fundamentadas a partir de debates com a população 6.
Frente a essas questões, a compreensão das diferentes culturas de percepção de risco e as motivações dos pais para vacinar ou não seus filhos são fundamentais para se enfrentar o desafio da prevenção que é colocado para a saúde coletiva.
Neste fascículo, o artigo de Barbieri et al. 5 aborda o tema da não-vacinação infantil, buscando compreender como pais e mães pertencentes às camadas médias de São Paulo, concebem as normatizações da vacinação no país, com base em suas vivências de vacinar, selecionar ou não vacinar os filhos. Os autores dão especial atenção à dimensão simbólica, aos sentidos e significações acerca das normatizações da vacinação no Brasil, e como elas ganham sentido nas práticas e motivam determinados padrões de orientação para a ação. Os dados foram produzidos em um estudo qualitativo, por meio de entrevistas em profundidade com casais de alta renda e escolaridade, residentes na cidade de São Paulo, com pelo menos um filho de até cinco anos de idade. Como referencial teórico, os autores se apoiaram na Antropologia do Direito e da Moral. Os resultados do estudo mostram, em uma perspectiva comparativa, as diferentes concepções sobre as normas entre os pais que vacinam, selecionam ou não vacinam os filhos. Para os primeiros, a prática da vacinação está inserida na "cultura da vacinação" já introjetada e não questionada, assumindo contornos morais e deixando em segundo plano a percepção de cumprimento da lei. Já para os pais que selecionam vacinas, essa prática é percebida como uma ação desviante da lei, igualmente com uma conotação moral. Ela não é percebida, no entanto, como uma possível infração da lei, mas como uma variação de comportamento dentro da norma cultural de vacinação. Entre os pais não vacinadores, chama atenção a percepção de ilegitimidade que o calendário de vacinação recomendado pelo PNI e as vacinas assumem para o seu modo de vida. A prerrogativa da autonomia dos pais e liberdade individual no cuidado dos filhos aparece como valor moral que se sobrepõe às normas, apesar do receio das imposições legais.
Em sua discussão sobre o conflito entre a liberdade individual e a perspectiva da saúde pública, os autores são, no entanto, cuidadosos na busca de um equilíbrio entre estes dois polos, com flexibilização para os casos em que a não-vacinação não represente riscos relevantes para a saúde pública.
Trata-se de uma questão complexa e que coloca para a saúde pública mundial o desafio de compreender os contextos e fatores que contribuem para a hesitação, não-vacinação e até deslegitimização de instituições e vacinas, e ao mesmo tempo pensar novas formas de comunicação e debate com a população visando à elaboração e fortalecimento de políticas públicas solidamente fundamentadas.
Referências
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