Cadernos de Saúde Pública
ISSN 1678-4464
33 nº.12
Rio de Janeiro, Dezembro 2017
ARTIGO
Diferenças e similaridades entre mulheres que vivem e não vivem com HIV: aportes do estudo GENIH para a atenção à saúde sexual e reprodutiva
Adriana de Araujo Pinho, Cristiane da Silva Cabral, Regina Maria Barbosa
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311X00057916
HIV; Saúde Sexual e Reprodutiva; Mulheres
Introdução
Nos últimos cinco anos, inovações tecnológicas no campo da prevenção, diagnóstico e tratamento do HIV vêm incrementando o debate sobre as necessidades e demandas em saúde sexual e reprodutiva de pessoas vivendo e não vivendo com HIV/aids.
Novas tecnologias de prevenção, como a profilaxia pré e pós-exposição, tratamento como prevenção e autotestagem têm permitido, no plano individual, a gestão do risco ao HIV e a redução da transmissibilidade do vírus 1. No campo da assistência e tratamento, o acesso e a adesão à terapia antirretroviral (TARV), além de terem aumentado a sobrevida das pessoas vivendo com HIV/aids (PVHA) 2, garantiram às mulheres não apenas ter filhos com risco reduzido de nascer com HIV 3,4, mas também que (re)considerassem a possibilidade de serem mães após o conhecimento de sua sorologia. Mais recentemente, o ensaio clínico HTPN052, em 2012, demonstrou que o uso precoce de TARV reduz a transmissão sexual do HIV em mais de 96% entre casais sorodiscordantes 5.
Os benefícios demonstrados pela TARV possibilitaram a reorganização das trajetórias sexuais, reprodutivas e afetivas, mas algumas questões permanecem complexas, como a relação entre concepção/contracepção e prevenção do HIV em casais sorodiscordantes. As escolhas contraceptivas, por exemplo, que são feitas pelas mulheres e, em alguns casos, pelos casais, devem levar em consideração não somente o risco de uma gravidez indesejada, mas os riscos de transmissão vertical e sexual, ainda que reduzidos no contexto de TARV e de supressão da carga viral. Ademais, o estigma e o preconceito ainda persistem e impedem que as PVHA acessem os serviços, insumos ou, ao menos, discutam questões relacionadas à sua vida íntima com os profissionais de saúde ou pessoas próximas que poderiam lhes garantir, em alguma medida, apoio social 6.
Constata-se, frequentemente, que as mulheres não têm suas questões e demandas sexuais, reprodutivas e contraceptivas consideradas nos espaços assistenciais, e tampouco são problematizados os contextos de vida que conformam suas trajetórias nestes campos. Ainda que o cenário epidemiológico recente seja de um aumento de casos entre jovens gays e outros homens que fazem sexo com homens e do aumento na razão homem/mulher nos casos de aids, 35% dos casos ocorrem em mulheres, a maioria em seu pico reprodutivo (25 a 39 anos de idade), e a transmissão heterossexual responde por 97,4% deles 7.
Em 2013, delineou-se um estudo, chamado GENIH: Gênero e Infecção no Contexto da Epidemia de HIV/aids no Município de São Paulo, inserido num conjunto mais amplo de iniciativas de pesquisa que visavam a suprir a lacuna de conhecimento, no Brasil, sobre as questões de saúde sexual e reprodutiva das mulheres vivendo com HIV/aids (MVHA) em diferentes contextos: São Paulo, com o presente estudo, Rio de Janeiro 8 e Porto Alegre (Rio Grande do Sul) 9. O estudo GENIH teve como objetivo comparar contextos de vulnerabilidade social e o comportamento sexual e reprodutivo de MVHA ao de uma amostra de mulheres não vivendo com HIV, usuárias da rede pública de atenção básica à saúde, denominadas, no texto, “mulheres da atenção básica”.
Conhecer as práticas e decisões no campo da sexualidade, reprodução e os contextos de vida, identificando situações de vulnerabilidade, em uma amostra representativa da população feminina com HIV na maior capital brasileira, atualizará a situação em que estas mulheres vivem e permitirá pensar em estratégias mais efetivas para integrar ações e serviços de saúde sexual e reprodutiva e de atenção/cuidado ao HIV. Ademais, pouco tem sido investigado sobre as práticas e decisões no campo da sexualidade e reprodução da população feminina em geral em sua interface com a prevenção do HIV. Portanto, ao fazer uma análise comparativa dos perfis relacionados à sexualidade, reprodução, prevenção e contracepção, e exposição a riscos sociais entre MVHA e mulheres da atenção básica, será possível também analisar como as questões relacionadas ao HIV entre a população feminina têm sido tratadas na atenção básica, foco atual das políticas de descentralização da atenção ao HIV no Brasil 10.
Metodologia
O estudo GENIH é uma investigação quantitativa de corte transversal, conduzida no Município de São Paulo entre fevereiro de 2013 e maio de 2014, em uma amostra representativa de MVHA e uma amostra comparativa de mulheres da atenção básica, com idades entre 18 e 49 anos.
O tamanho da amostra foi estimado em 1.000 para cada grupo de mulheres, já considerando o efeito do delineamento por amostragem complexa (deff) igual a 1,6. Um número adicional de entrevistas foi conduzido (25%) como margem de segurança relativa a eventuais perdas na amostra, devido à recusa e perda de acompanhamento da usuária dentro da unidade. Para compor a amostra de MVHA, foram incluídas as 18 unidades públicas de saúde de referência para o atendimento de MVHA, responsáveis por 95% do atendimento a pacientes de aids no município. Essas unidades constituíram os estratos, e a amostra de 1.000 mulheres foi distribuída por eles utilizando-se partilha proporcional, segundo o número médio de consultas de MVHA em cada unidade.
As mulheres da atenção básica foram sorteadas por meio de processo de amostragem estratificada por conglomerados em dois estágios. Os estratos foram formados pelas Coordenadorias Regionais de Saúde do Município de São Paulo e a partilha da amostra foi proporcional ao tamanho destas regiões, dado pela soma dos números médios mensais de consultas médicas e de enfermagem de suas Unidades Básicas de Saúde. Para o sorteio, as unidades foram ordenadas pela existência ou não da Estratégia Saúde da Família, de forma a se obter uma amostra estratificada implicitamente por esta variável. Foram sorteados 38 serviços, de um total de 442.
As mulheres foram selecionadas por meio de uma listagem de sorteio com o intervalo amostral pré-definido (sistemático). Supervisoras de campo as abordavam e convidavam para participar do estudo. Os propósitos da investigação e seus procedimentos eram explicados, e aquelas elegíveis que concordassem em participar eram encaminhadas para uma sala privativa onde era aplicado o termo de consentimento livre e esclarecido.
Após a assinatura do termo, um questionário eletrônico sociocomportamental foi aplicado por uma entrevistadora com o auxílio de um netbook. Os questionários eletrônicos foram gerados usando-se o software QDS (Questionnaire Development System - NOVA Research Company. http://www.novaresearch.com/QDS/) e pré-testados. Todos os procedimentos do estudo foram avaliados em estudo piloto.
O trabalho foi submetido e aprovado em quatro diferentes Comitês de Ética em Pesquisa (CEP): do Centro de Referência e Treinamento em DST/AIDS, Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo (nº 022/2011); do Instituto de Infectologia Emílio Ribas (nº 11712112.6.0000.5375); da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo (nº 0043/12); e da Universidade Federal de São Paulo (nº 11712112.6.0000.5375).
Para a análise dos dados, fez-se, inicialmente, uma caracterização sociodemográfica de ambas as amostras. São apresentadas estatísticas descritivas, como mediana e intervalo interquartil para medidas contínuas e proporções para variáveis categóricas. Para o grupo de MVHA, são também apresentadas informações sobre o contexto de diagnóstico (idade, tempo de diagnóstico, via de transmissão autopercebida e motivo de realização do teste anti-HIV). Foram investigadas as diferenças entre os grupos para as seguintes variáveis dicotômicas: início da vida sexual; número de parceiros sexuais; primeira gravidez antes dos 20 anos; número de parceiros de quem engravidou; proporção de gestações não planejadas; aborto provocado; uso de método contraceptivo; uso consistente de preservativo durante sexo vaginal com parceiro(s) sexual(is) no último ano; e situações indicativas de vulnerabilidade ou risco social ocorrido em algum momento da vida: violência física e/ou sexual sofrida, uso de drogas ilícitas e sexo em troca de dinheiro.
Para responder à pergunta sobre a existência de diferenças entre MVHA e mulheres da atenção básica em relação a situações de vida e perfil de saúde sexual e reprodutiva, buscou-se distinguir, quando possível, os eventos ocorridos antes do diagnóstico, ou quando este ocorreu durante o pré-natal/parto, daqueles que ocorreram após o diagnóstico, incluindo os que se referiam ao momento da entrevista com as usuárias.
Ao todo, foram realizadas 975 entrevistas com MVHA. Foram excluídas da análise as mulheres que não tinham iniciado a vida sexual e as infectadas por transmissão vertical, devido à impossibilidade de investigar situações de vida pregressas à infecção pelo HIV e compará-las ao grupo de mulheres da atenção básica. Os resultados apresentados são, portanto, referentes a 918 MVHA e 1.003 mulheres da atenção básica. A proporção de perdas (mulheres elegíveis sorteadas, porém não entrevistadas) nas duas amostras foi similar, 27% entre MVHA e 26,5% entre mulheres da atenção básica. As principais razões de recusas foram pressa/falta de tempo e não querer falar sobre o assunto.
Para as análises foi utilizado o pacote estatístico Stata 14.0 (StataCorp LP, College Station, Estados Unidos). Por meio do comando pós-estimação “margin”, comparou-se o efeito de pertencer a cada grupo na probabilidade de ocorrência dos diferentes eventos. Baseando-se na estimativa de probabilidades preditas de ocorrência de cada evento investigado (variáveis dicotômicas descritas anteriormente), ajustadas em modelos de regressão logística, calculou-se a significância estatística (p < 0,05) e a magnitude das diferenças (em pontos porcentuais) nas probabilidades preditas, chamadas de efeitos marginais, entre os dois grupos, controlando pelas demais covariáveis no modelo (idade, escolaridade e cor da pele). Quando utilizada, na análise comparativa, a ocorrência do evento antes/na época do diagnóstico para as MVHA ajustou-se, também, no modelo a idade que as mulheres tinham no diagnóstico. Todas as análises foram ajustadas pela amostragem complexa, e pesos foram usados para compensar as diferenças nas probabilidades de seleção das mulheres em ambas as amostras.
Resultados
Diferenças no perfil sociodemográfico entre MVHA e mulheres da atenção básica
A análise do perfil sociodemográfico das duas amostras
Tabela 1 Perfil sociodemográfico e contexto de vida de mulheres vivendo com HIV/aids (MVHA) e mulheres usuárias da rede de atenção básica à saúde (mulheres da atenção básica). Estudo GENIH, Município de São Paulo, Brasil, 2013-2014.
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Em ambas as amostras, mais de 80% das mulheres já haviam sido casadas ou estiveram em união estável. No momento da entrevista, a probabilidade de estar com parceiro foi significativamente maior para mulheres da atenção básica do que para MVHA (84,8% versus 69,8%). Ter tido dois ou mais filhos foi relatado em maior proporção entre as MVHA, aspecto que pode estar atrelado ao fato de estas mulheres serem mais velhas.
O contexto da testagem e do diagnóstico de HIV
A principal forma de infecção pelo HIV foi pela via sexual
Tabela 2 Características relacionadas à testagem e ao diagnóstico entre mulheres vivendo com HIV/aids (MVHA). Estudo GENIH, Município de São Paulo, Brasil, 2013-2014.
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O diagnóstico de HIV foi feito no pré-natal em aproximadamente um terço das MVHA. Comparando esses dados com o contexto de testagem entre as mulheres da atenção básica, observa-se que 83% destas já o haviam feito até o momento da entrevista. Ao considerar apenas as mulheres que nunca engravidaram, 50,3% nunca tinham feito o teste anti-HIV. O pré-natal ou o parto responderam por 64,6% da testagem entre as mulheres da atenção básica e 23,6% realizaram por iniciativa própria ou durante alguma campanha (dados não apresentados).
Diferenças nas experiências sexuais, de reprodução, prevenção e contracepção
As MVHA parecem iniciar a vida sexual mais cedo (até os 15 anos) e com parceiros mais velhos do que as mulheres da atenção básica
Tabela 3 Comportamento sexual e reprodutivo de mulheres vivendo com HIV/aids (MVHA) e mulheres usuárias da rede de atenção básica à saúde (mulheres da atenção básica). Estudo GENIH, Município de São Paulo, Brasil, 2013-2014.
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Embora a primeira gravidez, na maioria dos casos, ocorra em idade jovem (entre 18 e 24 anos) para ambas as amostras, a probabilidade das MVHA relatarem a primeira gestação antes dos 20 anos foi estatisticamente maior do que entre as mulheres da atenção básica
O uso consistente de camisinha como forma de prevenção entre aquelas sexualmente ativas, no ano anterior à pesquisa, foi estatisticamente maior entre as MVHA. À época do diagnóstico, o uso foi referido como sendo muito menor (10,5%). Cabe ressaltar que 30% das MVHA não usam camisinha consistentemente e, entre as mulheres da atenção básica, o não uso foi consideravelmente maior (84%). O uso de contracepção no momento da entrevista foi relativamente alto (83%) e maior também entre as MVHA
A proporção de gestações não planejadas no grupo de MVHA não parece ter mudado após o diagnóstico e foi estatisticamente maior do que entre as mulheres da atenção básica
Diferenças em contextos de vulnerabilidade social ao HIV
A probabilidade de ter usado alguma droga ilícita na vida, de ter tido um parceiro usuário de drogas e de já ter feito sexo em troca de dinheiro também foi estatisticamente maior para as MVHA do que para as mulheres da atenção básica
Tabela 4 Situações indicadoras de vulnerabilidade social de mulheres vivendo com HIV/aids (MVHA) e mulheres usuárias da rede de atenção básica à saúde (mulheres da atenção básica). Estudo GENIH, Município de São Paulo, Brasil, 2013-2014.
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A experiência de ter sofrido violência física e/ou sexual na vida e por parceiro íntimo esteve presente na vida de muitas mulheres nas duas amostras estudadas, porém com maior magnitude para as MVHA
Discussão
O estudo GENIH analisou os perfis das MVHA e de mulheres da atenção básica, comparando-os quanto à ocorrência de situações/condições em suas trajetórias de vida que, em alguma medida, contribuíram tanto para aumentar sua vulnerabilidade e risco à infecção pelo HIV quanto a outros eventos no campo reprodutivo. As diferenças no perfil sociodemográfico observadas entre as duas amostras acompanham as tendências da epidemia na população feminina do Município de São Paulo. As diferenças na distribuição etária, por exemplo, refletem não apenas o perfil da demanda assistencial na atenção básica ligada ao período gravídico-puerperal, portanto mais jovem, mas também o perfil etário na distribuição dos casos de aids na população feminina, que se concentra na faixa etária de 30 a 49 anos 11.
Quanto às diferenças na escolaridade, houve, entre 2004 e 2014, uma tendência de queda de casos de aids notificados entre mulheres com até o Ensino Fundamental incompleto e um aumento entre mulheres com nível superior completo e incompleto 11,12, aspecto que pode estar refletindo em nossos dados. Ademais, é necessário considerar os seguintes aspectos: primeiro, a política de acesso universal à TARV e o alto custo da medicação podem estar trazendo para os serviços de saúde mulheres com maior escolaridade; e segundo, a menor sobrevida de MVHA com mais baixa escolaridade 13 pode incrementar o número de casos prevalentes entre mulheres com maior escolaridade.
A maior proporção de MVHA que se autodeclararam pretas também reflete como a epidemia de aids tem se distribuído segundo a cor da pele; a taxa de detecção de aids entre mulheres pretas ou pardas no município foi maior do que para mulheres brancas em 2013 11.
As mulheres se infectam, majoritariamente, por meio de relações heterossexuais, sendo o pré-natal o contexto predominante de testagem e diagnóstico do HIV na população feminina em idade reprodutiva no Brasil e no Município de São Paulo 7,11. Embora tenha sido ampliada, a oferta de testagem ainda é concentrada no período gravídico 14. Tal ampliação parece estar contribuindo, relativamente, para reduzir o risco de diagnóstico tardio 15, porém, uma parcela considerável de mulheres neste estudo (22,6%), assim como mostram outras investigações 16,17, realiza o teste já na presença de sintomas de aids.
A centralidade do diagnóstico de HIV no período gravídico remete a algumas considerações. Primeiro, a baixa cobertura do teste diagnóstico entre mulheres que nunca engravidaram. Segundo, apesar da redução considerável na taxa de transmissão vertical entre aquelas com acesso à TARV no contexto brasileiro 3,4, esta forma de transmissão é possível dependendo do momento em que o teste é realizado no curso da gravidez (e parto). Terceiro, o diagnóstico durante a gravidez traz dilemas, inseguranças e riscos para outros eventos adversos, como violência durante a gravidez perpetrada pelo parceiro, estigma relacionado à revelação do HIV, medos associados à transmissão vertical e sexual, além da dupla carga emocional, física e socioeconômica, diante de um diagnóstico de HIV no contexto de uma gestação não planejada 18.
Importantes diferenças em relação à vida sexual e reprodutiva foram igualmente observadas entre os grupos. As MVHA iniciam a vida sexual mais cedo, como também assinalado por Santos et al. 16, e uma maior diferença etária com os parceiros na iniciação sexual feminina também foi mais frequente na amostra de MVHA. A maior diferença etária entre a mulher e o parceiro na iniciação sexual tem sido apontada como um dos fatores relacionados à associação entre infecção por HIV e outras IST e início precoce da vida sexual 19. Além de aumentar a exposição das mulheres a homens com mais experiência sexual pregressa e, portanto, maior risco de IST, dificulta a negociação sexual e o uso de formas de prevenção e contracepção em função de desigualdades de gênero 20,21. Esse aspecto pode estar relacionado ao aumento recente da taxa de detecção de casos de aids na população feminina entre 15 e 19 anos 7.
As MVHA parecem também ter sido mais expostas ao risco de gestações na adolescência comparativamente às mulheres da atenção básica. A gravidez na adolescência é maior entre as mulheres com baixa escolaridade e renda familiar per capita e negras, segundo a literatura nacional e internacional 19,22. Em nosso estudo observou-se que, mesmo após o ajuste por idade, escolaridade e cor da pele, as diferenças na fecundidade adolescente se mantiveram entre os grupos, sugerindo que outros fatores como, por exemplo, diferenciais no conhecimento e acesso a formas eficazes de gestão de riscos sexuais e reprodutivos durante a adolescência, estejam mais presentes na trajetória das MVHA.
Ter filhos biológicos de mais de um parceiro ao longo da trajetória reprodutiva (multipartnered fertility), observado em nosso estudo em maior proporção para MVHA, é um fenômeno com tendência crescente em sociedades ocidentais desde a segunda metade do século XX 23,24. No entanto, não há dados que mostrem a prevalência e distribuição desse fenômeno entre a população feminina brasileira em geral, tampouco entre MVHA. Ter filhos com mais de um parceiro nas trajetórias reprodutivas de homens e mulheres tem se mostrado associado à idade precoce no início da vida sexual e reprodutiva 24, e á situação de pobreza 25. No caso das MVHA, a morte do parceiro em função da aids é uma dimensão adicional desse cenário.
O menor uso de camisinha observado entre as mulheres da atenção básica sugere que ele não é priorizado pelas mulheres como estratégia de contracepção e de prevenção de IST 26. Ao contrário, para MVHA, o uso de camisinha tem sido relatado como o principal método de dupla proteção, ou seja, para prevenção concomitante de gravidez e de transmissão sexual do HIV 9,27,28. Apesar disso, a proporção de gestações não planejadas na amostra de MVHA não parece ter mudado após o diagnóstico, o que reforça que a ênfase conferida pelos profissionais de saúde ao uso de camisinha como método de dupla proteção pode não se mostrar eficaz para prevenir gravidez 26. Parte significativa das mulheres (e seus parceiros) mantém um perfil caracterizado pelo não planejamento da fecundidade, independentemente do diagnóstico de HIV. Resultado em sintonia com alguns estudos que mostram que o estado sorológico positivo ao HIV não está associado necessariamente com a diminuição da gravidez não planejada 27,29,30,31.
Quanto ao aborto provocado, as MVHA parecem recorrer mais ao procedimento ao longo da vida do que as mulheres da atenção básica, corroborando achados de outros estudos 32,33. A proporção no relato de aborto provocado alguma vez na vida entre MVHA (12%) foi muito próxima daquela observada por dois estudos brasileiros, ao redor de 13% 34,35. Nesse sentido, cumpre salientar que, embora as proporções de gestações não planejadas não tenham se mostrado estatisticamente diferentes antes e depois do diagnóstico, o relato de aborto realizado após o diagnóstico foi muito menor. Pilecco et al. 35 também observaram maior prevalência de aborto induzido em gestações ocorridas antes do diagnóstico do que naquelas pós-diagnóstico. Vários trabalhos internacionais observaram uma diminuição significativa no número de abortos induzidos entre mulheres HIV positivo após a introdução da TARV 36,37,38.
Esses resultados demandam reflexão sobre os fatores que influenciam a decisão de interromper ou não a gestação após o diagnóstico. No contexto de aborto após o conhecimento da sorologia, ainda que o HIV possa constituir um motivo importante, ele não é único, sendo circunstanciado por outros fatores na vida das mulheres. Alguns são relacionados à condição de soropositividade, como o medo da transmissão vertical, medo de não conseguir criar a criança devido à condição de saúde, e o impedimento da amamentação numa sociedade que a valoriza para afirmar a identidade de mãe e mulher. Além disso, o relacionamento com o parceiro e seu apoio, assim como o da família próxima, constituem outros elementos fundamentais para a tomada de decisão 39,40.
As trajetórias no campo sexual e reprodutivo descritas anteriormente são circunscritas, atravessadas e direta e indiretamente determinadas por outras situações que demarcam a vulnerabilidade e risco social das MVHA em relação às mulheres da atenção básica. As diferenças observadas entre os grupos com relação ao uso de drogas e à prática de sexo em troca de dinheiro também têm sido reportadas em outros estudos 9,16. Ambos são fatores de risco tanto para infecção e transmissão do HIV quanto para a ocorrência de eventos reprodutivos, como gestações não planejadas e aborto 32,34. A associação do uso de drogas (injetáveis ou não injetáveis) com relato de aborto provocado tem sido explicada pelo maior engajamento de mulheres usuárias de drogas em práticas sexuais sem proteção, aumentando o risco de uma gravidez indesejada, que, por sua vez, elevaria a chance de realizar um aborto 41.
No que se refere às mulheres que praticam sexo em troca de dinheiro observa-se um maior risco de IST e gestações não planejadas, tanto no contexto de seus relacionamentos estáveis quanto com clientes. Maior prevalência de aborto também tem sido observada nesse grupo em comparação à população feminina em geral 42,43. Tais dados sugerem dificuldades ainda maiores no acesso a métodos efetivos de contracepção, face ao duplo contexto de estigmatização conferido pela prostituição e pelo HIV.
As diferenças na proporção de relato de violência de gênero entre os grupos também foram estatisticamente significantes. Vários estudos têm mostrado o risco aumentado para IST/HIV entre mulheres que sofrem violência física e/ou sexual, particularmente aquela perpetrada pelo parceiro íntimo 44,45,46,47. Os mecanismos propostos para explicar tal associação revelam bidirecionalidade 47,48. As experiências de violência perpetrada pelo parceiro podem conduzir à infecção pelo HIV por meio da sua transmissão durante o ato de violência sexual, pelo maior envolvimento em práticas de risco para HIV entre aquelas que sofreram violência (como o não uso de camisinha) e pelo uso de drogas para lidar com situações violentas. Na outra direção, a infecção pelo HIV, após a sua revelação, aumentaria ou daria início a situações de violência ou, ainda, favoreceria a permanência ou a entrada em relacionamentos abusivos, por medo de não encontrar um novo parceiro que aceitasse sua sorologia. Ademais, violência física e/ou sexual por parceiro íntimo tem sido estatisticamente associada a eventos relacionados às trajetórias reprodutivas das mulheres, como gestações não desejadas/planejadas e aborto induzido 49.
Limitações do estudo
Os fenômenos analisados estão interconectados nas trajetórias de vida das mulheres; há um encadeamento e coexistência de múltiplos eventos nessas trajetórias, cuja análise requereria uma perspectiva longitudinal, escopo de futuros artigos. A não distinção de todos os episódios investigados concernentes à época de sua ocorrência, se antes ou depois do diagnóstico, e ao fato de termos entrevistado mulheres de ambos os grupos que estão, em alguma medida, vinculadas à rede pública de serviços de saúde, pode ter limitado a presente análise. Não dispomos de informações concernentes à saúde sexual e reprodutiva e de prevenção e cuidado ao HIV/aids das mulheres que não acessam os serviços públicos. Parte dessas não o faz por ter acesso à rede privada/conveniada; no entanto, é possível supor que outra parcela corresponda exatamente a uma população ainda mais vulnerável, que não acessa a rede básica. Entre essas, os indicadores da infecção, para aquelas vivendo com HIV, assim como aqueles relacionados à saúde sexual e reprodutiva, podem ser ainda piores.
Considerações finais
Os resultados mostram que alguns eventos, comportamentos e práticas no campo da saúde sexual e reprodutiva persistem após ou independentemente do diagnóstico, como o não planejamento da fecundidade, a prevalência de aborto e a violência contra a mulher, e que, portanto, outros fatores se sobrepõem ou se conjugam para determiná-los. Apesar da maior magnitude de diversos comportamentos e situações entre as MVHA, uma parcela considerável das mulheres da atenção básica compartilha as mesmas experiências, tornando-as também vulneráveis à infecção pelo HIV. A identificação desses contextos de vulnerabilidade entre mulheres da atenção básica e a oferta oportuna da testagem anti-HIV trazem à cena a importância da sensibilização e treinamento continuado dos profissionais de saúde da atenção primária em estratégias de prevenção e diagnóstico precoce.
Para além do pré-natal, é fundamental a oferta sistemática da testagem anti-HIV e sua realização de maneira desburocratizada e rápida, aproveitando-se de outros momentos para esta oferta, como durante o rastreamento para câncer de colo uterino, as ações de planejamento reprodutivo e de cuidado após a menopausa, e nos serviços e programas de atendimento a mulheres em situação de violência (psicológica, física e sexual). Ademais, a oferta de testagem precisa ser um locus privilegiado para a discussão de práticas de sexo seguro, profilaxia pré e pós-exposição, prevenção de outras IST, métodos combinados de prevenção, entre outros.
Devido às relações entre diversos eventos em saúde da mulher com o risco de infecção pelo HIV e vice-versa, pensar em estratégias integrais e integradas no atendimento às mulheres e homens, seja na atenção básica ou em serviços especializados, é mister em tempos de indícios de reemergência da epidemia de aids no Brasil 50. Não há dados publicados sobre como a integração de serviços de saúde sexual e reprodutiva e serviços de testagem e atenção às pessoas vivendo com HIV/aids tem sido operacionalizada nos sistemas e serviços de saúde no Brasil, embora conste na Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher (2004) e no Plano de Enfrentamento da Feminização da Epidemia de aids e outras IST (2007). Com a descentralização da testagem anti-HIV, e mais recentemente o ordenamento das linhas de cuidado às pessoas vivendo com HIV por meio da atenção básica, em que outras necessidades e demandas em saúde estão presentes, torna-se oportuna a efetivação de tal estratégia.
Os dados apresentados reforçam a perspectiva de que não é possível pensar nas linhas de cuidado para MVHA sem considerar suas trajetórias ligadas à reprodução e sexualidade e vice-versa 26. De forma similar, sinalizam também a inviabilidade de construir linhas de cuidado para as mulheres da população em geral sem integrar serviços de prevenção em saúde sexual e reprodutiva, incluindo a prevenção e cuidado relacionados às IST/HIV/aids.
Agradecimentos
As autoras agradecem a Mitti Koyama pelo suporte estatístico; a Maria Cecilia Goi Porto Alves e Maria Mercedes Loureiro Escuder pelo desenho amostral; às supervisoras e entrevistadoras de campo; e a Rocio Elizabeth Chávez Alvarez pela supervisão crítica do trabalho de campo. Ao CNPq - processo nº 471892/2011-4; Fapesp - processo nº 2012/25239-3, OPAS (s/número).
Referências
Cadernos de Saúde Pública | Reports in Public Health
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