Cadernos de Saúde Pública
ISSN 1678-4464
33 nº.12
Rio de Janeiro, Dezembro 2017
QUESTÕES METODOLÓGICAS
Validação do modelo lógico teórico da vigilância alimentar e nutricional na atenção primária em saúde
Santuzza Arreguy Silva Vitorino, Marly Marques da Cruz, Denise Cavalcante de Barros
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311X00014217
Técnica Delfos; Estudos de Validação; Avaliação em Saúde; Vigilância Nutricional
Introdução
A vigilância alimentar e nutricional, inserida no modelo sanitário de vigilância em saúde, foi formalizada como área de atuação do Sistema Único de Saúde (SUS) pela Lei Orgânica da Saúde (Lei nº 8.080/1990), com o objetivo de monitorar o estado nutricional e o consumo alimentar da população, e assim fornecer informação para o monitoramento da execução e avaliação dos resultados de programas sociais de alimentação e nutrição e de segurança alimentar e nutricional 1,2.
Ao longo de quase trinta anos de SUS, foram produzidos pelo Ministério da Saúde instrumentos ordenadores da descentralização administrativa 3 e organizativos da atenção primária à saúde (APS), com base nos quais seriam promovidas ações de vigilância alimentar e nutricional em conformidade com as diretrizes da Política Nacional de Alimentação e Nutrição (PNAN) 1,2,4.
A operacionalização da vigilância alimentar e nutricional na APS se dá pelas ações de alimentação e nutrição desenvolvidas pelas equipes da Estratégia Saúde da Família (ESF), pelo registro de dados do estado nutricional, pelo consumo alimentar dos indivíduos no Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (SISVAN) e por outros sistemas de informação em saúde.
Com a vinculação da vigilância alimentar e nutricional a programas sociais como o Programa Bolsa Família, Programa Saúde na Escola e Programas de Alimentação e Nutrição para o acompanhamento das condicionalidades dos beneficiários destes programas e do grupo materno-infantil, o sistema passou a ter um caráter burocrático e apresenta, como consequência, uma baixa cobertura populacional quanto ao monitoramento do estado nutricional e incipiência de monitoramento do aspecto alimentar 5,6,7,8.
Em face do contexto demográfico e das transições epidemiológica e nutricional em curso, em que se destaca a epidemia da obesidade, são fundamentais a ampliação da cobertura populacional da vigilância alimentar e nutricional para todas as etapas do ciclo da vida, bem como a melhoria da qualidade das informações e a inclusão de marcadores de consumo alimentar, no sentido de garantir um efetivo monitoramento do estado de saúde de indivíduos e grupos populacionais. Além disso, essas informações precisam ser contínuas, oportunas, de qualidade e representativas da população a que se referem, para serem úteis no processo decisório 9,10.
A situação da vigilância alimentar e nutricional aponta para fragilidades no processo de implementação da intervenção que comprometem o alcance de seus objetivos e reforçam a importância de se fazer uma pesquisa avaliativa. Nesse sentido, a descrição da teoria de funcionamento de uma intervenção pode aumentar a capacidade de a avaliação estimar o impacto de um programa, fortalecendo a instalação, a entrega e a utilização dos resultados observados. Sua apresentação no formato de modelo lógico otimiza tempo, recursos, definição de indicadores e aspectos a serem monitorados e avaliados, identificando, com mais clareza, a contribuição da intervenção e de outros componentes para o alcance dos resultados 11.
A validação do modelo lógico teórico contribui para ampliar o debate, fortalecer a implementação e a aprendizagem dos envolvidos, sejam eles pesquisadores, gestores, profissionais ou usuários da intervenção. Possibilita também ampliar a validade interna do modelo lógico teórico e abrir uma oportunidade para o diálogo entre a teoria e sua crítica a respeito de convicções, experiências e conhecimento 11,12. Pressupõe que o julgamento coletivo, quando adequadamente organizado, é mais preciso do que o julgamento individual 13.
Acredita-se que a discussão sobre o modelo lógico teórico da vigilância alimentar e nutricional possa contribuir para a definição de matrizes de monitoramento dos processos da vigilância alimentar e nutricional na APS, sendo assim um instrumento útil e oportuno para ajudar na tomada de decisão antes mesmo que a avaliação propriamente dita seja feita 14. Poderá, assim, ter utilidade para instâncias de gestão e profissionais nos serviços, além de instâncias de controle social 15.
Diante do exposto, pretende-se descrever as etapas de desenvolvimento e os resultados do processo de validação do modelo lógico teórico da vigilância alimentar e nutricional na APS.
Material e métodos
O modelo lógico teórico é uma representação visual da estrutura lógica de uma intervenção 11 e foi previamente elaborado representando o funcionamento da vigilância alimentar e nutricional na APS, explicitando os vínculos esperados entre as estruturas, os processos e os resultados 14. O foco deste trabalho está centrado na estrutura e nos processos que orientam a vigilância alimentar e nutricional no nível local em municípios de pequeno porte populacional, definidos como aqueles que têm população inferior a vinte mil habitantes 16.
O modelo lógico teórico não tem a pretensão de ser uma verdade universalmente aplicável, especialmente no que se refere à diversidade social, econômica e cultural dos municípios brasileiros. Por isso, na modelização é fundamental incorporar novas informações e pontos de vista a respeito de convicções, experiências e conhecimentos, consultando especialistas na área de alimentação e nutrição. O intuito, assim, é aumentar a validade do constructo e fortalecer a replicação analítica dos estudos de caso, desenho de pesquisa que parte da teoria para a empiria 17. Métodos participativos, como as técnicas de consenso 18,19, têm sido utilizados com essa finalidade.
A técnica Delphi tem sido amplamente incorporada a diversas áreas do conhecimento para o alcance do consenso sobre determinado assunto, possibilitando envolver pesquisadores que trabalham com o tema, gestores que são atores potenciais no processo decisório e incorporar o ponto de vista de outros atores, como profissionais de saúde e usuários 20,21. É um processo iterativo e interativo, em que um grupo de especialistas é convidado a emitir sua opinião sobre um tema, de forma individual e anônima 13.
A
Figura 1 Descrição da validação do modelo lógico teórico da vigilância alimentar e nutricional na atenção primária à saúde do Sistema Único de Saúde (SUS), utilizando-se a técnica Delphi.
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As principais características da técnica Delphi são o anonimato dos envolvidos, a realização de rodadas, nas quais o material é enviado, respondido e devolvido aos pesquisadores; a seguir, ele é analisado, organizado em categorias, acrescido ou não de novas questões e reapresentado aos participantes para duas ou mais rodadas necessárias até que o consenso, estatisticamente definido, seja alcançado 13.
Para a busca do consenso, foi convidado um grupo de vinte especialistas, assim distribuídos: 50% de pesquisadores, 20% de gestores, 15% de profissionais de saúde (nutricionistas) que atuam na atenção primária em saúde e 15% dos usuários do Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA) de Minas Gerais. Para alcançar um pouco da diversidade brasileira, foram incluídos representantes das regiões Norte, Nordeste, Centro-oeste, Sudeste e Sul, que atuavam em municípios de diferentes portes populacionais.
A amostra foi de conveniência e o rol de participantes atendeu a um ou mais dos seguintes critérios de inclusão: formação em nutrição; experiência em gestão pública há mais de dez anos; ser pesquisador/professor na área de alimentação e nutrição; atuar na assistência à saúde do SUS, vinculado aos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF); e ser membro do CONSEA. Após um mapeamento inicial dos perfis que atendessem aos critérios descritos, foi feito contato telefônico explicando a técnica, o objetivo do estudo e a importância da participação. O instrumento foi enviado por correio eletrônico àqueles que aceitaram participar.
Todos os participantes eram mulheres, 19 nutricionistas e uma odontóloga. A maioria com, no mínimo, mestrado, com mais de dez anos de graduação e consolidada experiência na área. As áreas e os locais de atuação foram distribuídos entre atenção à saúde, gestão, ensino e pesquisa e entre as esferas municipal, estadual e federal. Os critérios importantes quanto ao perfil do profissional que está colaborando com o trabalho foram preenchidos, isto é, profissionais qualificados e com comprovada experiência na temática vigilância alimentar e nutricional. A amostra deveria contar, também, com representantes das cinco regiões do país, que trouxessem a vivência de diferentes níveis hierárquicos de atuação do SUS e/ou da vigilância alimentar e nutricional em municípios de diferentes portes populacionais.
O primeiro instrumento, enviado em agosto de 2016 aos especialistas, foi composto: (1) pelo Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE); (2) pela descrição do objeto sob validação: a vigilância alimentar e nutriciconal quanto ao seu funcionamento na APS do SUS no formato de texto e de fluxograma, a primeira versão do modelo lógico teórico da vigilância alimentar e nutricional na APS; (3) pela descrição do papel do modelo lógico teórico da intervenção no processo avaliativo; e (4) pelas instruções para o preenchimento do instrumento.
O segundo instrumento foi enviado em novembro de 2016 somente aos quinze participantes que devolveram o primeiro preenchido. O instrumento continha: (1) um breve consolidado do primeiro instrumento quanto ao perfil dos respondentes e principais resultados; (2) a reapresentação da descrição do modelo lógico juntamente com o esquema visual já incorporando os aspectos trazidos na primeira rodada; e (3) as matrizes referentes à estrutura, aos processos e aos resultados para análise da relevância dos itens.
Uma parte da teoria descrita foi apresentada para ser analisada e classificada pelos especialistas quanto à pertinência e relevância dos componentes do modelo lógico teórico no que se refere à estrutura (recursos humanos, físicos, materiais e financeiros), aos processos e aos resultados esperados. Procurou-se, ainda, abordar a questão da governabilidade, do projeto de governo e da capacidade de governo para o processo de implementação de uma intervenção, ainda que restrita a seus aspectos normativos 14. Ao final do estudo de validação, foram incorporadas ao modelo lógico teórico as sugestões trazidas pelos participantes e consensuadas pelo grupo.
Nas duas rodadas, os instrumentos foram organizados em 11 blocos, sendo os blocos de 1 a 4 relacionados à estrutura; os de 5 a 8 aos processos; e os de 9 a 11 aos resultados da gestão das ações de vigilância alimentar e nutricional e da realização do diagnóstico alimentar e nutricional.
Na primeira rodada, o bloco 1 abordou o aspecto menos normatizado pelo Ministério da Saúde, os recursos humanos. Consistiu de perguntas abertas, sobre as quais o participante deveria emitir sua opinião a respeito das habilidades técnicas necessárias para que um profissional desenvolvesse atividades de vigilância alimentar e nutricional na APS. Foi solicitado que indicasse um profissional ou categoria, segundo sua área de formação em ciências da saúde, exatas ou sociais, e o respectivo nível de formação em fundamental, médio ou superior. Nos blocos 2, 3 e 4, foram detalhados os demais itens da estrutura, relacionados aos recursos físicos, materiais e financeiros, necessários ao desenvolvimento das atividades de vigilância alimentar nutricional. Esses aspectos são mais normatizados e foram previamente identificados na literatura. O participante foi consultado sobre a pertinência de cada item para a realização das atividades de vigilância alimentar nutricional e deveria responder sim ou não 22.
No que tange ao processo, blocos 5 a 8, o participante também deveria analisar e julgar a pertinência dos itens de uma lista de atividades descritas como fundamentais para o funcionamento da vigilância alimentar e nutricional, além dos resultados esperados em curto, médio e longo prazos, segundo a realização de tais atividades, blocos 9 a 11. Ao final de cada bloco, foi inserido um espaço em branco para que o participante emitisse livremente a sua opinião sobre a necessidade de inclusão de aspectos não considerados, caso quisesse justificar a resposta dada ou ainda emitir qualquer comentário que julgasse pertinente.
Os formulários preenchidos e devolvidos na primeira rodada foram codificados e as respostas digitadas em planilhas no Microsoft Excel (Microsoft Corp., Estados Unidos). As informações sobre a pertinência foram analisadas segundo a estatística descritiva. Os itens considerados pertinentes por, no mínimo, 12 dos 15 participantes, equivalendo a pelo menos 80% dos especialistas, foram considerados consensuados. Os itens não pertinentes foram reformulados ou excluídos do segundo instrumento. As considerações dos participantes foram listadas e categorizadas, resultando na inclusão de novos itens e na reformulação de outros.
Na segunda rodada, foi solicitado ao participante que analisasse novamente o esquema visual e sua respectiva descrição e, apoiado em sua experiência e vivência profissional, respondesse sobre a relevância dos itens do instrumento. A classificação da relevância foi feita em uma escala de quatro pontos, que ia do nada relevante, passando pelo pouco relevante e relevante, ao muito relevante 22, como exemplificado na
Figura 2 Enunciado e parte do conteúdo dos blocos 1 e 3 do segundo instrumento para validação do modelo lógico teórico da vigilância alimentar e nutricional.
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A escolha da pontuação permitiu determinar um valor de relevância para cada item. A pontuação final dos itens foi calculada multiplicando-se o número total de respondentes que considerou o item pertinente pelo valor dos pontos recebidos. Foram consensuados, quanto à relevância, os itens cuja pontuação final alcançou pelo menos 80% do valor máximo disponível e que apresentaram alto nível de concordância, confirmado pela análise da mediana das respostas e do intervalo entre o primeiro e o terceiro quartis 13,18.
O primeiro instrumento foi devolvido pelos participantes ao longo de um mês. No total, quinze participantes devolveram o instrumento preenchido, resultando em uma perda de 25%. Essa perda consistiu especialmente de participantes da categoria pesquisadores, que compunham 50% da amostra. Entre os respondentes havia pelo menos um representante de cada uma das cinco regiões do país, de oito estados diferentes e 13 municípios de diversos portes populacionais. Minas Gerais foi o estado com o maior número de participantes, justificado por ser o local de realização do estudo.
O mapeamento sobre os recursos humanos resultou em uma diversidade de opiniões. As informações foram listadas segundo cada atividade descrita, tabuladas e excluídas quando repetidas. Todas as habilidades profissionais citadas foram elencadas e categorizadas em habilitações profissionais e reapresentadas no segundo instrumento, conforme ilustrado na
O segundo instrumento foi devolvido por 12 participantes, sendo três profissionais atuantes na atenção à saúde, cinco na gestão, três no ensino e pesquisa e um no CONSEA. A perda correspondeu a 20% dos participantes. Esse material foi codificado e digitado em planilhas do Microsoft Excel, e a seguir foi feito o somatório referente à valoração de cada item. Para verificar o nível de relevância, foram calculados a mediana e o intervalo interquartílico. Ao considerar o máximo de 12 respondentes, todos os itens que alcançaram pontuação superior a 29 pontos, apresentaram mediana 3 e intervalo interquartílico igual ou inferior a 1 foram classificados como muito relevantes pelos participantes e incluídos nas matrizes que detalham o processo de funcionamento da vigilância alimentar e nutricional, tendo como fundamento o seu modelo lógico teórico. O resultado final do processo de validação foi posteriormente enviado aos participantes para informá-los.
O número total de rodadas do processo de validação depende do nível de consenso alcançado, pois quanto menos discordância entre os itens avaliados mais rapidamente o processo pode ser concluído. Usualmente, três a quatro rodadas são necessárias, mas, neste caso, observou-se elevado grau de consenso desde a primeira rodada, o que justificou a realização de somente duas 13,18.
Este trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, da Fundação Oswaldo Cruz, sob o CAAE 40192414.9.0000.5240. Cabe destacar que a devolução do instrumento preenchido por correio eletrônico implicou a concordância e aceitação de participação no estudo e foi equivalente à assinatura do TCLE.
Resultados
A
Tabela 1 Total de pontos, mediana e intervalo interquartílico dos itens relacionados à estrutura necessária para a realização das ações de vigilância alimentar e nutricional: recursos financeiros, materiais, físicos e humanos. Minas Gerais, Brasil, 2016.
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Por sua vez, a
As células em cinza, nas
Tabela 2 Total de pontos, mediana e intervalo interquartílico dos itens relacionados ao processo das ações de vigilância alimentar e nutricional e respectivos resultados de curto prazo. Minas Gerais, Brasil, 2016.
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O conteúdo relacionado aos resultados em médio prazo, entendido como aqueles que envolvem precisão, confiabilidade, representatividade e oportunidade da informação sobre o estado nutricional e consumo alimentar da população, ultrapassa o escopo desta proposta, cujo foco é o processo de implantação, um dos aspectos da avaliação sistêmica proposta por Januzzi 23. O mesmo ocorre com os resultados de longo prazo ou impacto das ações de vigilância alimentar e nutricional, relacionados ao efetivo uso da informação para tomada de decisão. Dessa forma, os resultados relacionados a essas etapas não serão apresentados.
Por fim, a
Figura 3 Modelo Lógico Teórico da vigilância alimentar e nutricional na atenção primária à saúde validado após o Delphi. Minas Gerais, Brasil, 2016.
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Discussão
O entendimento de intervenção adotado que norteou a descrição do funcionamento da vigilância alimentar e nutriciconal na APS e sua validação é o de “um sistema organizado de ação, que inclui os atores nela envolvidos, tanto no planejamento e organização, quanto na execução das atividades, uma estrutura que trata do conjunto de recursos e das regras que escapam ao controle dos atores e os objetivos a serem alcançados” 11 (p. 61).
É importante assinalar que a vigilância alimentar e nutricional está inserida na APS no contexto das diretrizes da Política Nacional de Atenção Básica 1,2,4,5,6,7,8,9,10,24,25, PNAN e Política Nacional de Promoção da Saúde. Intersetorialmente, dialoga com a Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional 26,27,28,29,30 e com o Ministério da Educação - Programa Saúde na Escola e Programa Nacional de Alimentação Escolar 1,2,10.
As informações fornecidas pelo monitoramento do estado nutricional e do consumo alimentar da população deveriam orientar as ações de alimentação e nutrição subsequentes, relacionadas à assistência e ao cuidado nutricional, à prevenção dos distúrbios nutricionais e à promoção da saúde 14. Esse conjunto de intervenções relacionadas ao campo da alimentação e nutrição está inserido em um contexto demográfico, social, econômico, cultural e epidemiológico, que, nesta proposta, compreende os municípios de pequeno porte populacional.
A mesma racionalidade que orientou a elaboração do Modelo Lógico Teórico orientará a discussão dos resultados, a tríade estrutura/processo/resultado 11. A estrutura foi descrita em termos de recursos financeiros, materiais, físicos e humanos. Em recursos financeiros, o treinamento em biografia e cultura alimentar sugerido por um especialista não foi reconhecido como um item relevante pelos participantes, e foi sugerido por outro que este conteúdo fosse incorporado ao aspecto do treinamento em consumo alimentar.
No que se refere aos recursos materiais, embora tenham sido considerados relevantes por todos os especialistas em situações específicas e justificadas, dois especialistas argumentaram que fórmulas lácteas não devem ser disponibilizadas na rotina da APS, agregando esforços à política de alimentação e nutrição no que tange à promoção do aleitamento materno 6,9. O item balança para cadeirante foi considerado muito relevante pelos especialistas, mas suprimido neste enfoque de municípios de pequeno porte em função do custo-efetividade 31. Por outro lado, instrumentos para aferir a composição corporal, uma central de 0800 e uma sala de situação de saúde no nível local foram itens julgados pouco relevantes.
Todos os itens apresentados em recursos físicos foram considerados relevantes e estão relacionados à estrutura física que deve estar disponível para a realização de ações no nível primário de atenção do SUS, para o qual existe aporte de recursos específicos, ainda que nem sempre suficientes 1,2,4.
Em relação aos recursos humanos, eles foram organizados segundo atividades diretamente relacionadas aos objetivos e aos três componentes técnicos do modelo lógico teórico, elaborados para a vigilância alimentar e nutricional: planejamento, gestão e organização das práticas, e monitoramento e avaliação da intervenção em municípios de pequeno porte populacional.
Os resultados descritos na
Inserida no NASF, a atuação do nutricionista em nível individual deveria fortalecer a realização do componente alimentar da vigilância alimentar e nutricional para além da investigação sobre o estado nutricional realizada pelos agentes comunitários de saúde (ACS) para o SISVAN, alcançando a prescrição dietética, atribuição privativa da categoria profissional, que poderia ser fortalecida e ampliada. A ausência desse profissional enfraquece a realização de ações de educação alimentar e nutricional 2,32,33.
Em nível coletivo, o profissional deve oferecer suporte e matriciamento às equipes da ESF vinculadas 2 e desempenhar o papel de facilitador deste processo, sensibilizando e estimulando as equipes a desenvolver um olhar vigilante e crítico sobre as questões alimentares e nutricionais da população, seja na livre demanda ou segundo atividades programáticas 33. Outros profissionais de saúde de nível superior podem estar envolvidos na realização das ações de saúde e contribuir com informações relacionadas ao diagnóstico clínico, bioquímico, socioeconômico e cultural dos indivíduos do território adstrito 1.
Um profissional de nível médio deve ser designado para digitar os dados nos sistemas de informação em saúde. A seguir, o coordenador da vigilância alimentar e nutricional, juntamente com sua equipe, incluindo o nutricionista e outros profissionais de saúde, deveria analisar os relatórios gerados pelo sistema e utilizar esta informação, em período oportuno, para o planejamento. Além disso, deveria divulgar as informações obtidas entre as instâncias de controle social e se articular com outros setores que atuam sinergicamente para a garantia da segurança alimentar e nutricional: agricultura, abastecimento, desenvolvimento agrário, educação e assistência social. Atualmente, existe articulação intersetorial formal entre saúde, educação e assistência social 26,27,28, embora a amplitude do alcance do conceito de segurança alimentar e nutricional demande interação mais incisiva, também entre outros setores governamentais, como a reforma agrária e a regulamentação da propaganda de alimentos 29,30.
No que se refere ao processo, as sugestões dos participantes foram subdividir o planejamento das ações de vigilância alimentar e nutricional em dois componentes, um estratégico e um administrativo. O primeiro é compreendido como tarefa da alta administração, aquele no qual são definidas as estratégias que serão adotadas em longo prazo pela gestão municipal e deveriam resultar no projeto de governo, um dos vértices do triângulo de governo de Matus 34.
O planejamento administrativo aparece como sendo o detalhamento do planejamento estratégico num prazo intermediário, com a fixação dos objetivos e recursos necessários para o alcance das estratégias organizacionais. Tendo no horizonte os objetivos da vigilância alimentar e nutricional, envolve ainda o acompanhamento de indicadores de processo e resultados na rotina dos serviços. Tais atividades, desenvolvidas pela administração média, estão associadas à capacidade de governo 34, o segundo vértice do triângulo de governo.
A gestão e a organização das práticas, entendidas como o planejamento do dia a dia, voltadas para cronogramas, alcance de metas de produção ou tarefas específicas dos planejamentos anteriores, estão associadas ao terceiro e último vértice do triângulo de governo, a governabilidade, que, por sua vez, não está dada, precisa ser construída entre gestão e profissionais de saúde ao envolver diferentes interesses 34.
Mas de que gestores estamos falando? E de que profissionais? O nível de formação do gestor da vigilância alimentar e nutricional afeta a qualidade do projeto de governo, e sua articulação com os profissionais de saúde no nível local afeta a capacidade de governo, estando ambas relacionadas ao planejamento e ao monitoramento e avaliação.
Para as ações de planejamento, gestão e organização das práticas de vigilância alimentar e nutricional, o profissional citado nos instrumentos normativos é o nutricionista. A atuação do nutricionista como responsável técnico é recomendada pela Portaria nº 2.246, de 18 de outubro de 2004, que institui e divulga orientações básicas para a implantação das ações de vigilância alimentar e nutricional no âmbito do SUS. Todavia, um inquérito descritivo realizado em 2012, que contou com a participação de 50,6% dos 853 municípios de Minas Gerais, de diferentes portes populacionais, revelou que a formação da maioria das referências técnicas da vigilância alimentar e nutricional era em enfermagem (48%) ou nutrição (29%) 35.
Não menos importante é a questão da formação desse profissional que deve gerir as ações de vigilância alimentar e nutricional. Embora a articulação entre os Ministérios da Saúde e Educação venha encaminhando as diretrizes curriculares para a formação profissional nos moldes do SUS, especialmente em termos de capacitações para os profissionais da ponta e em nível de pós- graduação 24, o componente de planejamento dos cursos de graduação em saúde ainda é um desafio frente à prática hegemônica do atendimento clínico individualizado tão em voga, reforçado pela mídia e redes sociais 36.
A organização e a gestão das práticas parecem ser menos afetadas pela ausência do nutricionista do que o planejamento e o monitoramento e avaliação, possivelmente em função das normatizações dos programas sociais existentes. No entanto, a burocracia não tem sido capaz de induzir o gestor a usar a informação produzida para a tomada de decisão em nível coletivo, resultando em mero cumprimento para garantir a continuidade dos programas, sem efetivo uso da informação 5,6,7,25.
Embora o impacto almejado - uso da informação para tomada de decisão - seja coerente com alguns dos objetivos da vigilância alimentar e nutricional, seria ingênuo pensar que somente os critérios técnicos, entre os quais a informação oportuna, representativa e de qualidade sobre o estado nutricional e o consumo alimentar da população, seriam contemplados no processo de tomada de decisão. Esse critério envolve, muitas vezes, aspectos subjetivos e pouco mensuráveis, que precisam ser identificados e trabalhados segundo a realidade de cada contexto e segundo o cenário das disputas de poder local, para os quais o processo avaliativo pode contribuir 23,25,37.
Como vantagem deste estudo, destaca-se que o processo de validação permite o intercâmbio de ideias e percepções sobre um tema entre pessoas distantes geograficamente e com vivências e experiências diferenciadas sobre um objeto, como no caso da vigilância alimentar e nutricional, seja como profissional, gestor, pesquisador/professor ou usuário 18, conferindo maior credibilidade ao estudo.
Outra vantagem é o anonimato, que permite ao participante a liberdade de expressão, de forma independente da pressão hierárquica ou de grupo. Além disso, é prática por possibilitar ao participante responder em horários alternativos e ser de baixo custo de execução, realizada a distância, com o uso do correio eletrônico e telefone 13,18,21.
A abstenção esperada neste tipo de estudo é de 30 a 50% na primeira rodada e de 20 a 30% na segunda. Quanto mais rodadas, maiores as perdas 13. Nesta validação, observou-se perda de 25% na primeira e 20% na segunda rodada. A despeito dos baixos percentuais de perda como um todo, a categoria pesquisadores, além de ser a maioria, foi a que mais sofreu baixas, chegando a 70% dentro do grupo. Considera-se que essas perdas não tenham comprometido a consistência interna da validação realizada em função da representatividade dos outros grupos envolvidos.
Como limitações, destacamos a demora na execução de todo o processo, incluindo as rodadas necessárias para a definição do consenso; o elevado custo de preparação quanto aos recursos humanos envolvidos na elaboração do material; a dependência do engajamento dos participantes para a qualidade do material gerado; e a possibilidade de influência indevida na direção do consenso, pela formação da maioria dos participantes em nutrição, especialmente quanto aos aspectos menos normatizados como os recursos humanos 13,18,20.
Considerações finais
Compreender as diferentes formas de implementação da intervenção, segundo particularidades de cada contexto, é determinante para o aprimoramento da vigilância alimentar e nutricional. A validação da teoria de funcionamento da vigilância alimentar e nutricional dá suporte à generalização analítica do método de estudos de caso, estratégia recomendada quando se considera um contexto específico.
Embora o modelo lógico teórico pareça refletir uma estrutura engessada e estanque, seu confronto com uma realidade empírica permitirá a inclusão de elementos do contexto que favorecem ou prejudicam a implementação da vigilância alimentar e nutricional. Resultarão desta etapa a elaboração do modelo lógico operacional da intervenção e novas evidências para a (re)elaboração deste modelo lógico teórico ora validado.
Pensar a teoria da intervenção junto a diversos especialistas na área ressalta a importância de incorporar uma diversidade contextual de preferências e interesses, além de ser o primeiro passo para o envolvimento de alguns dos potenciais interessados no processo avaliativo em questão, como gestores, profissionais e usuários, na perspectiva de garantir, futuramente, o uso dos resultados da avaliação.
O foco nos processos e o caráter formativo da avaliação têm contribuído para o envolvimento dos potenciais interessados na intervenção e no processo avaliativo. Ao estimular a reflexão de atores-chave sobre as próprias práticas, ela possibilita ampliar o conhecimento de todos sobre a intervenção e, consequentemente, o aprimoramento da vigilância alimentar e nutricional ao longo do processo avaliativo.
Em todo caso, o modelo validado se configura como uma contribuição para a gestão da vigilância alimentar nutricional na atenção primária em saúde no âmbito do sistema de saúde, na medida em que permite um acompanhamento do progresso mais apropriado e legítimo da intervenção para os municípios.
Agradecimentos
A todos os especialistas que participaram desta validação, pela disponibilidade e interesse em contribuir para a melhoria do SUS. Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pela concessão da bolsa de doutorado e a todos os especialistas que participaram desta validação, pela disponibilidade e interesse em contribuir para a melhoria do SUS. À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG), pelo financiamento.
Referências
Cadernos de Saúde Pública | Reports in Public Health
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