Cadernos de Saúde Pública
ISSN 1678-4464
33 nº.2
Rio de Janeiro, Fevereiro 2017
ARTIGO
Acidentes por quedas, cortes e queimaduras em crianças de 0-4 anos: coorte de nascimentos de Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil, 2004
Raquel Siqueira Barcelos, Iná S. Santos, Alicia Matijasevich, Aluísio J. D. Barros, Fernando C. Barros, Giovanny Vinicius Araújo França, Vera Lúcia Schmidt da Silva
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311X00139115
Acidentes; Acidentes por Quedas; Queimaduras; Ferimentos Penetrantes; Criança
Introdução
Os acidentes representam um problema de saúde mundial e constituem a primeira causa de morte em crianças e adultos jovens, em muitos países 1,2,3. É estimado que, no mínimo, 875 mil crianças e adolescentes morram como consequências de lesões não intencionais e intencionais, a cada ano, no mundo 2. A maioria dos acidentes na infância compreende as quedas, queimaduras, cortes, afogamentos e intoxicações 4, que podem acarretar desde a incapacidade física temporária até sequelas mais graves e permanentes, ou mesmo a morte 5.
Frequentemente, os acidentes na infância são interpretados como obra do acaso ou considerados como um evento normal para a idade 6,7, mas, estudos mostraram que o baixo nível socioeconômico da família, supervisão inadequada, estresse familiar, condições impróprias de moradia e características da personalidade infantil, como hiperatividade, agressividade, impulsividade e distração, são fatores de risco para a ocorrência de acidentes 8.
Não há dados populacionais atualizados sobre a distribuição de acidentes na infância conforme a gravidade da lesão, uma vez que a maioria dos estudos é realizada entre usuários de serviços de saúde, principalmente os de emergência, sendo raras as pesquisas de base populacional 9,10; mas, há três décadas, um trabalho de base populacional realizado em Massachusetts, Estados Unidos, mostrou que a maioria das crianças que se acidentam não chega aos serviços de saúde: para cada acidente com morte, havia 45 crianças com lesões que necessitavam internação hospitalar, 1.300 que demandavam tratamento médico ambulatorial ou em salas de emergência e quase 2.500 que não chegavam ao conhecimento dos serviços de saúde 11.
Um relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS) de 2014 mostrou que mais de 5 milhões de pessoas morrem a cada ano devido a lesões, incluindo as autoinfringidas, acidentes de trânsito, queimaduras, afogamentos, quedas, intoxicações, entre outras 12. No Brasil, dados do Sistema de Vigilância de Violências e Acidentes (Inquérito VIVA), obtidos em serviços sentinela de urgência e emergência de 24 capitais e do Distrito Federal, entre setembro e outubro de 2011, estimam que aproximadamente 14.225 pessoas foram atendidas devido a quedas, das quais, cerca de um quinto (24,1%) correspondia a crianças entre 0-9 anos de idade 13.
O conhecimento da incidência de acidentes, de acordo com o estágio de desenvolvimento da criança, é importante para a formulação de programas de prevenção dirigidos a cada faixa etária. No Brasil, várias ações visando à redução da morbimortalidade por acidentes e violência são recomendadas pela Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências, entre elas: promoção da adoção de comportamentos e de ambientes saudáveis; monitorização da ocorrência de acidentes; sistematização, ampliação e consolidação do atendimento pré-hospitalar aos acidentados, entre outras, visando ao melhor atendimento e ao desenvolvimento de novas pesquisas na área 14. Assim, este estudo teve como objetivo descrever a incidência de quedas, cortes e queimaduras, até os quatro anos de idade, conforme o nível econômico da família e idade e escolaridade maternas, entre as crianças pertencentes à coorte de nascimentos de Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil, 2004.
Metodologia
Localizada no extremo Sul do Brasil, no Estado do Rio Grande do Sul, Pelotas é uma cidade com uma população em torno de 330 mil habitantes (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo demográfico de 2010. http://cidades.ibge.gov.br/xtras/perfil.php?lang=&codmun=431440&search=rio-grande-do-sul|pelotas, acessado em 20/Mar/2015). Em 2004, todos os recém-nascidos nas cinco maternidades entre 1º de janeiro e 31 de dezembro, de mães residentes na zona urbana do município, eram elegíveis para participar da coorte de nascimentos de Pelotas de 2004, um estudo de coorte prospectivo. Até o presente, as crianças receberam visitas aos 3, 12, 24, 48 e 72 meses e aos 11 anos de idade. Das 4.231 crianças nascidas vivas e incluídas na coorte, a proporção acompanhada aos 12, 24 e 48 meses foi de 94,3%, 93,5% e 92%, respectivamente. Aos 48 meses, a proporção acompanhada foi maior (94%) entre crianças filhas de mães mais velhas (≥ 35 anos) e menor (~90%) entre aquelas de famílias nos extremos superior e inferior de renda 15. Os questionários aplicados em cada acompanhamento continham questões sobre características demográficas, socioeconômicas, comportamentais e biológicas da mãe e da criança. Maiores detalhes sobre a coorte estão disponíveis em outras publicações 15,16,17. No estudo atual foram analisadas 3.815 crianças entre 0-12 meses, 3.783 de 12-24 e 3.717 entre 24-48 meses, para as quais havia informação disponível sobre os desfechos. Os gêmeos foram excluídos das atuais análises (86 crianças).
Foi considerado acidente qualquer evento relatado e interpretado como tal pela mãe ou responsável, desde que tenha resultado em alguma lesão física, nos acompanhamentos dos 12, 24 e 48 meses de idade. No acompanhamento dos 12 meses, a seção do questionário que investigava acidentes iniciava com "Agora vou lhe fazer algumas perguntas sobre acidentes que <CRIANÇA> tenha tido:". Em seguida, era perguntado em sequência: "<CRIANÇA> já caiu e se machucou?", "<CRIANÇA> já se cortou?" e "<CRIANÇA> já se queimou?", com as seguintes opções de resposta: "não, sim e ignorado". Quando a resposta era "sim", era perguntado: "Quantas vezes?". Nos acompanhamentos de 24 e 48 meses as perguntas eram semelhantes, mas se referiam ao intervalo de tempo decorrido entre o acompanhamento anterior e o atual. Por exemplo, aos 24 meses perguntou-se: "Desde que fez 1 ano, <CRIANÇA> já caiu e se machucou?".
Foi considerada queda quando a mãe respondeu afirmativamente que a criança caiu tendo ficado machucada, roxa ou sofrido esfoliação leve (arranhão, raspão etc.). Foram investigados cortes provocados por faca, vidro ou outro objeto cortante, e queimaduras com líquidos ou objetos quentes, fogo ou substâncias inflamáveis. Foi registrada a ocorrência e o número de quedas, cortes e queimaduras entre 0-12, 12-24 e 24-48 meses de idade. Quanto ao número de acidentes, quando a resposta da mãe foi "muitas vezes" ou "várias vezes", as crianças foram classificadas na categoria com o maior número absoluto de acidentes. Nos acompanhamentos de 12 e 24 meses, o período recordatório referia-se aos 12 meses anteriores à entrevista (entre 0-12 e de 12-24 meses, respectivamente). No acompanhamento dos 48 meses, o recordatório referia-se aos dois anos anteriores à entrevista (de 24 a 48 meses de idade).
As variáveis independentes foram obtidas no estudo perinatal, sendo incluídas a idade da mãe (anos completos por ocasião do parto, posteriormente categorizada em < 20, 20-30 e > 30 anos); escolaridade materna, coletada em anos completos de estudos com aprovação e, para a análise, categorizada em 0-4, 5-8 e > 8 anos; e o índice econômico da família, que foi construído com base na informação sobre bens de consumo e educação do chefe da família e, subsequentemente, dividido em cinco quintis, sendo o Q1 o mais baixo (famílias mais pobres) e o Q5, o mais alto (famílias mais ricas).
As análises foram realizadas no programa estatístico Stata 12.0 (StataCorp LP, College Station, Estados Unidos). Foram analisados dois desfechos: o percentual de crianças que sofreu pelo menos um de cada um dos tipos de acidente por período e a taxa de incidência de cada um dos tipos de acidentes, por 100 crianças, por período. A incidência cumulativa de cada tipo de acidente, em cada período e ao longo dos primeiros quatro anos de vida, foi calculada por regressão de Poisson, sendo apresentadas as razões de taxas de incidência e os respectivos intervalos de 95% de confiança (IC95%). Todas as análises foram estratificadas pelo sexo da criança, e as incidências apresentadas conforme a idade e a escolaridade maternas e o índice econômico da família.
Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pelotas (COCEPE no 4.06.01.113; OF.046/06; e OF.012/07). Todas as mães entrevistadas assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, em cada acompanhamento, concordando em participar da pesquisa.
Resultados
Na
Neste estudo, foram incluídas 3.815 crianças para a análise entre 0-12 meses (1.837 meninas e 1.978 meninos), 3.783 para o período de 12-24 meses (1.815 meninas e 1.968 meninos) e 3.717 para o de 24-48 meses (1.782 meninas e 1.935 meninos). Um total de 3.563 crianças (1.706 meninas e 1.857 meninos) tinham informações completas sobre acidentes em todos os acompanhamentos, entre 0-48 meses de idade.
Tabela 1: Descrição da amostra de acordo com as características maternas no momento do parto e estratificada conforme o sexo da criança.
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Dentre os meninos, as medianas (intervalo interquartil) de quedas entre 0-12, 12-24 e 24-48 meses foram, respectivamente, 1 (0-2), 2 (1-10) e 2 (0-20); dentre as meninas as medidas correspondentes foram 0 (0-1), 2 (0-10) e 2 (0-20). As medianas (intervalo interquartil) para cortes entre 0-12, 12-24 e 24-48 meses, entre os meninos, foram 0 (0-0), 0 (0-1) e 0 (0-1); e, entre as meninas, 0 (0-0), 0 (0-0) e 0 (0-1). Para queimaduras, as medianas e intervalo interquartil para meninos e meninas, nos três períodos de idade analisados, foram 0 (0-0).
Acidentes no primeiro ano de vida
As quedas foram os acidentes mais frequentes no primeiro ano de vida. Cerca de metade das crianças (49,5% das meninas e 55,6% dos meninos)
Tabela 2: Proporção de meninos e meninas que sofreram pelo menos uma queda, corte e queimadura, de acordo com a idade. Coorte de nascimentos de Pelotas, Rio Grade do Sul, Brasil, 2004.
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A
Entre os meninos filhos de adolescentes, a incidência de quedas foi 50% maior e a de cortes, 80% maior, em comparação aos de mães com mais de 30 anos
Tabela 3: Taxas de incidência por 100 crianças e razões de taxas de incidência para quedas, cortes e queimaduras aos 12 meses (intervalo de 95% de confiança - IC95%), de acordo com idade e escolaridade maternas e índice econômico da família, estratificadas pelo sexo e idade da criança. Coorte de nascimentos de Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil, 2004 (n = 3.815).
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Acidentes no segundo ano de vida
Mais de 70% das crianças sofreram alguma queda entre o primeiro e o segundo aniversários
Em ambos os sexos, a incidência de quedas e cortes foi maior entre aqueles cujas mães tinham menos de 30 anos
Tabela 4: Taxas de incidência por 100 crianças e razões de taxa de incidência para quedas, cortes e queimaduras aos 24 meses (intervalo de confiança de 95%), de acordo com idade e escolaridade maternas e índice econômico da família, estratificadas pelo sexo e idade da criança. Coorte de nascimentos de Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil, 2004 (n = 3.783).
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Acidentes entre 2 e 4 anos de idade
As quedas continuaram sendo o tipo de acidentes mais frequente: dois terços das meninas e 71% dos meninos sofreram alguma queda no período
Tal como nas idades mais precoces, as quedas e cortes incidiram mais frequentemente entre as crianças filhas de mães com menos de 30 anos de idade, pertencentes aos quintis mais pobres
Tabela 5: Taxa de incidência por 100 crianças e razões de taxas de incidência para quedas, cortes e queimaduras aos 48 meses (intervalo de 95% de confiança - IC95%), de acordo com idade e escolaridade maternas e índice econômico da família, estratificados pelo sexo e idade da criança. Coorte de nascimentos de Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil, 2004 (n = 3.717).
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Discussão
O aumento observado na taxa de acidentes do primeiro para o segundo ano de vida, em ambos os sexos, é consistente com a literatura 18,19,20. A maior incidência entre os meninos foi também relatada por outros autores 9,10,11,18,19,20,21,22,23,24,25,26. As razões envolvidas na diferença entre os sexos não são claras. Alguns sugerem que a maior vulnerabilidade dos meninos pode ser devida a aspectos da personalidade, que os levaria a envolverem-se em situações de risco mais frequentemente do que as meninas 2. Ao contrário, pode haver uma maior supervisão dos pais em relação às meninas, além dos tipos de brincadeiras poderem ser diferentes das dos meninos 1.
A taxa de incidência dos três tipos de acidentes tomados em conjunto, ao longo dos quatro anos, no atual estudo, foi de 337 por 100 crianças, sendo as quedas o tipo mais relatado (286 por 100 crianças entre 0-4 anos de idade) (dados não mostrados). Informações do Inquérito VIVA (2009-2011) mostraram que, entre todos os atendimentos por acidentes de crianças, as quedas foram responsáveis pela maior proporção 13. A taxa de incidência de cortes de 0-4 anos, no atual estudo, foi de 27 por 100 crianças e a de queimaduras, 12 por 100 crianças (dados não mostrados). A taxa de incidência observada por Fonseca et al. 21, em um mês, numa subamostra da coorte de nascimentos de Pelotas de 1993, foi de 26 por 100 crianças, compatível com o atual achado, uma vez que aquele estudo foi realizado entre novembro de 1997 e maio de 1998, quando as crianças estavam com 4 a 5 anos de idade. O sistema de vigilância de hospitais e salas de emergência em Massachusetts, nos Estados Unidos, em 1980-1981, também registrou as quedas como o tipo mais frequente de acidentes 11. Em Chicago, Estados Unidos, entre 1994-1998, dentre os atendimentos de departamentos de emergência, as quedas apresentaram a maior incidência entre os acidentes sofridos por crianças de 0-4 anos 26. Já o estudo realizado por Mohammadi et al. 10, em 2005, por meio de informações obtidas em departamentos de emergência na República Islâmica do Irã, mostrou que os acidentes mais frequentes foram, em ordem decrescente, queimaduras, cortes e quedas.
Não foi possível comparar as associações verificadas entre os tipos de acidentes em cada faixa etária da infância com as variáveis maternas e a renda familiar com os achados de outras pesquisas. Na literatura, foi localizado apenas um estudo que investigou a incidência de acidentes de acordo com as variáveis familiares e maternas, não tendo sido encontrada associação entre renda familiar e escolaridade dos pais com a ocorrência de acidentes 21. O relatório da OMS, anteriormente mencionado 12, mostra que a ocorrência de acidentes é maior entre indivíduos de menor renda, tanto em países de média e baixa rendas quanto nos países mais ricos, sendo, portanto, consistente com os atuais resultados. Um estudo de caso-controle aninhado a uma coorte que investigou riscos para queimaduras em crianças menores de 5 anos de idade, encontrou que os filhos de mães com mais de 40 anos apresentavam menores probabilidades de queimaduras, quando comparados aos filhos de mães adolescentes, diferentemente do encontrado neste trabalho 27. Mas, nesse mesmo estudo, a relação entre ocorrência de acidentes e renda familiar foi concordante com os nossos resultados, uma vez que crianças de famílias com menos bens de consumo apresentaram maiores chances de queimaduras, em comparação às de famílias mais ricas 27.
Medidas preventivas devem ser pensadas a fim de reduzir as taxas de acidentes. De acordo com a OMS, o planejamento, implementação e monitorização de estratégias preventivas efetivas devem seguir os seguintes passos: monitorização da extensão e natureza dos acidentes, identificação de fatores de risco, desenvolvimento de estratégias para abordar as causas e avaliar os efeitos dessas medidas e, por fim, colocar em prática, implementando programas de prevenção eficazes 12. No Brasil, as políticas nacionais de redução da morbimortalidade por acidentes e violência e de atenção integral à saúde da criança priorizam, entre outros, a monitorização da extensão e natureza dos acidentes que chegam aos serviços de urgência, e a emergência e a prevenção de acidentes, respectivamente 14,28.
Este trabalho apresenta alguns aspectos positivos, bem como limitações. Entre os aspectos positivos destacam-se a base populacional, o delineamento de coorte, o período de observação relativamente longo e a baixa proporção de perdas em cada acompanhamento. A diferença de 514 crianças (12%) entre o início da coorte e as análises de 48 meses, neste estudo, deveu-se aos seguintes motivos: 94 óbitos, 338 perdas e recusas (mudança de cidade; mudança de endereço e pelo menos três buscas, em dias e horários diferentes, sem sucesso) e 82 crianças que não tinham informações sobre acidentes aos quatro anos de idade. Comparando-se as perdas ao total da coorte, houve diferença apenas com relação à idade materna, sendo que o número de mães perdidas no acompanhamento de 48 meses foi maior na faixa etária de 20-30 anos. A grande maioria dos estudos publicados foi realizada com dados hospitalares, registros de centros especializados em traumas e séries de casos de salas de emergência. Essas fontes de dados apresentam limitações, seja por representarem os casos mais graves de acidentes, que demandaram atendimento médico, ou por abordarem tipos específicos de acidentes, como quedas de beliches, quedas decorrentes da prática de esportes no gelo etc.
Entre as limitações, não foram investigadas as circunstâncias que levaram ao acidente (como o local onde ocorreu, quem acompanhava a criança no momento do acidente), gravidade específica da lesão nem se foi necessário procurar atendimento médico, aspectos estes importantes para a definição de medidas de prevenção. Dados não publicados da coorte de 2004 mostram que houve 14 internações hospitalares entre 0-4 anos de idade, decorrentes de quedas, cortes ou queimaduras (uma taxa de incidência de 1 por mil crianças), metade das quais devido a estes últimos. Outra limitação está no fato de não ter sido avaliada a ocorrência de ingestão e/ou aspiração de corpos estranhos, intoxicações exógenas por medicamentos e domissanitários, picadas de insetos ou mordeduras por animais domésticos ou peçonhentos. Além disso, pelo fato de a informação depender da percepção das mães ou responsáveis sobre o que consideravam quedas, cortes ou queimaduras, pode ter havido viés de informação, uma vez que, dependendo da experiência prévia dos pais ou responsáveis a interpretação das perguntas poderia variar. Não foram encontradas publicações de estudos planejados para medir a validade da informação materna sobre a ocorrência de acidentes na infância. As altas taxas de incidência observadas, no entanto, permitem levantar algumas hipóteses: seriam os ambientes habitualmente frequentados pelas crianças pelotenses excessivamente inseguros ou as altas incidências seriam decorrentes, essencialmente, da inclusão de acidentes que resultaram em lesões de baixa gravidade? Os estudos implementados em hospitais e salas de emergência apresentam taxas de incidência bem menores. A taxa de quedas, por exemplo, entre 0-5 anos de idade, observada no estudo de Massachusetts, foi de 18 por 100 crianças/ano 11 e, em Chicago, entre 0-4 anos de idade, de 12 por 100 crianças/ano 26. Futuros estudos poderão esclarecer esse aspecto. No entanto, o período recordatório relativamente longo em cada acompanhamento favorecia o relato dos acidentes que resultaram em lesões mais graves. Assim, as condições de segurança dos ambientes frequentados pelas crianças pelotenses necessitam ser investigadas em trabalhos especificamente planejados para este fim. Adicionalmente, não entraram no escopo deste estudo a investigação de características culturais e regionais relativas ao cuidado familiar, os valores culturalmente transmitidos como cuidado nem o papel paterno na prevenção de acidentes.
Apesar das limitações, este trabalho contribui com o conhecimento por apresentar taxas de incidências com base em informações coletadas desde o nascimento até os quatro anos de idade. Medidas preventivas de quedas, cortes e queimaduras já estão bem definidas 29,30 e incluem proteção em berços, camas, escadas e janelas, para evitar as quedas; manter fora do alcance da criança objetos de decoração, utensílios de cozinha, tesouras e todo tipo de objeto cortante, a fim de evitar os cortes; e cuidar a temperatura da água do banho, evitar o alcance de panelas quentes sobre o fogão, dificultar o acesso a objetos de fácil combustão, prevenindo assim as queimaduras. Mães adolescentes, de famílias mais pobres e com menor escolaridade devem estar no alvo das ações de saúde, para que medidas preventivas possam ser implantadas nos ambientes de risco.
Conclusões
Em resumo, este estudo mostrou que, até os quatro anos de idade, as quedas foram os acidentes que ocorreram com maior frequência tanto entre meninos quanto entre meninas. Os meninos sofreram mais quedas e cortes do que as meninas nos dois primeiros anos de vida, mas, depois desta idade não houve diferença entre os sexos. No segundo ano de vida, a incidência de quedas e queimaduras praticamente triplicou e a de cortes dobrou, em comparação ao primeiro ano, em ambos os sexos. As queimaduras ocorreram com igual frequência entre meninas e meninos nos três períodos de idades analisados. As incidências de quedas e cortes estiveram estáveis após os 2 anos de idade, enquanto que a de queimaduras reduziu a taxas próximas às do primeiro ano de vida.
Além disso, ser filho de mãe adolescente esteve associado à maior probabilidade de quedas e cortes, entre meninos e meninas nos três períodos analisados, e de ocorrência de queimaduras entre os meninos no segundo ano de vida. A baixa escolaridade materna associou-se ao maior relato de cortes e queimaduras aos 48 meses, em ambos os sexos; a cortes, entre meninos aos 24 meses; e a queimaduras, entre meninas aos 12 meses. A baixa renda familiar mostrou associação com o relato de quedas e cortes aos 48 meses e de queimaduras aos 12 meses, em ambos os sexos; além de quedas entre meninas aos 12 meses e de cortes, entre meninos, aos 24 meses.
Agradecimentos
Este artigo foi realizado com dados do estudo coorte de nascimentos de Pelotas, 2004, conduzidos pelo Programa de Pós-graduação em Epidemiologia da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), com o apoio da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO). De 2009 a 2013, a coorte de nascimentos de 2004 foi financiada pelo Wellcome Trust. Fases anteriores do estudo foram financiadas pela Organização Mundial da Saúde, Programa de Apoio a Núcleos de Excelência (PRONEX), Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Ministério da Saúde e Pastoral da Criança.
Referências
Cadernos de Saúde Pública | Reports in Public Health
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