Cadernos de Saúde Pública
ISSN 1678-4464
33 nº.12
Rio de Janeiro, Dezembro 2017
ARTIGO
Violência física grave entre parceiros íntimos como fator de risco para inadequação no rastreio do câncer de colo de útero
Ricardo de Mattos Russo Rafael, Anna Tereza Miranda Soares de Moura
http://dx.doi.ogr/10.1590/0102-311X00074216
Neoplasias do Colo do Útero; Programas de Rastreamento; Violência Doméstica; Violência Contra a Mulher; Atenção Primária à Saúde
Introdução
As taxas de mortalidade por cânceres do colo do útero continuam a ocupar as primeiras posições dentre os óbitos na população feminina, permanecendo como um relevante e desafiador problema de saúde pública 1. A combinação de estratégias preventivas para as infecções pelo HPV e o rastreamento sistematizado por meio da colpocitologia oncótica tem sido apontada como uma das principais medidas custo-efetivas para a redução da morbimortalidade da doença, sendo também o alicerce das estratégias de controle dessa neoplasia no Brasil 2,3.
Desde 2011, o país ampliou a faixa etária alvo dos programas de rastreio, passando a recomendar que as mulheres entre 25 e 64 anos realizem um exame colpocitológico trienal, após dois resultados negativos, subsequentes e com intervalo menor que um ano. A utilização de outras técnicas diagnósticas e, quando aplicável, confirmatórias da doença está indicada somente quando existem resultados atípicos na primeira fase do rastreamento, evitando a realização desnecessária de exames e também racionalizando custos para o sistema de saúde 4. Estudo de âmbito nacional apontou que 78,4% (IC95%: 78,0-78,9) das mulheres entre 25 e 64 anos referiram a realização de, ao menos, um exame nos últimos três anos 5. Embora os resultados deste inquérito demonstrem aproximação da cobertura de 80%, preconizada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) 6, é importante considerar as diferenças regionais no rastreamento, variando de 73,1% a 81,3%, respectivamente, no Nordeste e Sudeste do país.
O clássico estudo da Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (IARC), que aponta a redução de cerca de 91% da incidência cumulativa da doença para populações com adequada realização do rastreio na faixa etária alvo, também subsidiou a ampliação da oferta de exames colpocitológicos no âmbito da atenção primária à saúde no país, especialmente por meio da Estratégia Saúde da Família (ESF) 4,5,6,7. Cada equipe multiprofissional desse nível de atenção oferece cobertura para até 4 mil pessoas e está localizada no próprio território das comunidades, o que favorece o monitoramento da população adscrita e a busca ativa da clientela faltosa, facilitando a realização de ações de prevenção do câncer do colo do útero 8.
Mesmo com o acesso facilitado no âmbito da ESF, uma parcela considerável de mulheres permanece excluída do sistema de captação precoce, dificultando a prática de exames de rastreio e imputando riscos adicionais para o desenvolvimento da neoplasia 2,3,4. Diversos são os modelos teóricos que tentam explicar as dificuldades para a frequência regular em serviços de saúde, abordando preferencialmente questões estruturais próprias dos programas oferecidos ou variáveis sociodemográficas, tais como a idade, a escolaridade, a cor/etnia e as classes econômicas 9,10. As questões de gênero e as crenças individuais das usuárias vêm ganhando espaço recente em debates e investigações sobre o tema, ao considerar sentimentos e sensações possivelmente vivenciados pela mulher como medo, vergonha e esquecimento, auxiliando na compreensão dos fatores impeditivos em relação à realização de exame de rastreio. As diversas representações do medo se somam aos aspectos sociodemográficos e ao estilo de vida das usuárias, compondo um conjunto de barreiras para o autocuidado em saúde, que parecem estar relacionadas à dinâmica familiar, ao apoio e ao suporte social, aspectos ainda considerados como lacuna na produção de conhecimento sobre prevenção de câncer do colo do útero 11,12.
A literatura já aponta para a associação entre conflito familiar/violência íntima e a dificuldade de acesso e utilização de serviços de saúde, especialmente aqueles que demandam frequência regular 2,13. Apesar da definição proposta pela OMS, os limites e a aceitação das práticas de violência íntima ainda são bastante controversos, tendo em vista a evolução histórica sobre o tema e sua construção sociocultural. Mesmo com essas dificuldades, a intencionalidade, a desigualdade de poder e o uso de força, que causa ou potencialmente pode causar danos, têm sido apontados como elementos que distinguem a ocorrência de violência. De tipificação variada e não excludente, caracterizam-se por práticas de abuso psicológico, físico e sexual, com consequências de difícil detecção pelas equipes de saúde e, até certo ponto, pelas próprias pessoas que vivenciam essas situações 14. Ao se considerar o papel especial ainda exercido pela mulher como principal cuidadora familiar e a sua elevada presença em serviços de saúde, parece clara a necessidade de se contemplar aspectos da dinâmica familiar e estilos de vida - como o uso e abuso de álcool - para melhor compreensão da escolha pela realização de exames relacionados ao diagnóstico de doenças graves e de mau prognóstico.
Na tentativa de colaborar com o entendimento dessa aparente aproximação entre o uso de equipamentos de saúde e a dinâmica familiar vivenciada pela clientela e tomando como referência as variáveis envolvidas na causalidade dos dois constructos, essas dimensões explicativas foram inseridas no modelo teórico do estudo a fim de ampliar a possibilidade de entendimento da cadeia causal. As variáveis sociodemográficas, sobretudo a idade, a escolaridade, a classe econômica e as condições de moradia influenciariam de modo distal o desfecho de interesse - a inadequação no rastreamento do câncer, interagindo também com o fenômeno das violências, como já apontado na literatura 2,3,6,8. É importante destacar que o tempo de estudo tem sido apontado como um fator que medeia as relações de uso dos serviços de saúde, o que possivelmente poderia ampliar o efeito de determinadas exposições, como no caso das violências. De modo intermediário, o consumo abusivo de álcool foi inserido no modelo não apenas como fator de risco para a ocorrência de violência, mas também por impactar nas relações familiares estabelecidas pelas usuárias e seus estilos de vida 13,14,15, sendo um possível fator que medeia as relações entre as violências e o uso dos serviços de saúde.
Baseado no modelo teórico proposto, o presente estudo tem como objetivo avaliar a violência física grave entre parceiros íntimos como fator de risco para inadequação no rastreio do câncer do colo do útero no âmbito da ESF. Está claro que será possível iluminar apenas uma parcela dessa complexa relação, especialmente por considerar que outras variáveis podem mediar as relações causais, sobretudo aquelas que se relacionam nos níveis macropolíticos sociais e comunitários, expressas em níveis superiores do modelo ecológico das violências e que não fazem parte do escopo desta investigação 14.
Método
Desenho, cenário, população do estudo e dinâmica de coleta de dados
Trata-se de um estudo do tipo caso-controle, vinculado ao projeto Barreiras no Acesso do Rastreio do Câncer do Colo Uterino: Um Estudo sobre as Relações da Violência Íntima e do Uso Abusivo de Álcool em Usuárias da Saúde da Família, realizado no Município de Nova Iguaçu, pertencente à região metropolitana do Estado do Rio de Janeiro, Brasil. Mesmo após a recente expansão da atenção primária, o município ainda apresenta concentração da rede de saúde e dos equipamentos sociais em sua região central, eleita como local de estudo objetivando o recrutamento de participantes que possuíssem melhores condições de acesso. A região possui cinco unidades de saúde da família, totalizando dez equipes multiprofissionais. A menor unidade, que possui uma equipe e cobertura inferior a quatro mil pessoas, foi utilizada na etapa do estudo piloto. Os demais serviços participaram da coleta de dados, totalizando nove equipes de saúde e população adscrita de 26.025 habitantes.
A população alvo do estudo compreendeu o conjunto de mulheres com idade entre 25 e 64 anos de idade, cadastradas na ESF, conforme orientação dos programas de rastreio do câncer do colo do útero no Brasil 4. A amostra foi composta por residentes na área de cobertura das equipes de saúde da família, que relataram relacionamento íntimo por, pelo menos, um ano e que tenham frequentado uma das unidades no período da coleta (novembro de 2012 a junho de 2013). Foram excluídas as mulheres com história de histerectomia, cirurgia de alta frequência, conização ou com qualquer lesão cervical de alto grau detectada previamente, condições que modificariam os critérios de eleição para a realização do rastreamento do câncer.
O tamanho amostral foi calculado utilizando-se intervalo de 95% de confiança (IC95%), poder de 80%, odds ratio (OR) de 2,0 e baseando-se na proporção de um caso para cada três controles. A amostra final foi de 640 participantes, sendo 160 casos e 480 controles, divididos igualmente nas quatro unidades estudadas. Considerou-se caso a inadequação no rastreio do câncer do colo do útero, ou seja, as mulheres que não realizaram o exame colpocitológico nos últimos três anos, a contar da data de coleta de dados. Como controles, foram selecionadas as mulheres que acessaram os serviços de saúde no mesmo período e que possuíssem, ao menos, um exame nos últimos três anos, conforme as recomendações do Ministério da Saúde 4.
Os casos foram selecionados por ocasião da realização de diferentes procedimentos na unidade, tais como consultas médicas, de enfermagem e odontologia, acompanhamento de outros usuários ou familiares - como idosos e crianças ao serviço, ou para obtenção de outras informações. Na impossibilidade de as equipes disponibilizarem uma lista prévia de usuários que frequentam a unidade diariamente, a captação de casos ocorreu a partir da relação global de mulheres com mais de três anos de intervalo do último exame colpocitológico (critério definidor desse grupo). O formulário de elegibilidade foi aplicado às usuárias e, cumpridos os critérios de seleção, prosseguiu-se para a fase de aplicação dos instrumentos, não havendo perdas ou recusas nesse grupo. Para cada participante alocada como caso, foram selecionadas três mulheres para o grupo de controles, por oportunidade e dando preferência às suas acompanhantes, parentes e vizinhas. A dinâmica de recrutamento dos controles também ocorreu aplicando-se o formulário de elegibilidade, apresentando perda de 8,3% (n = 40).
Instrumento de coleta de dados
Para a coleta de dados, foi utilizado instrumento multidimensional que contemplou inicialmente os aspectos sociodemográficos da amostra, composta pelas variáveis independentes relacionadas a idade, cor/etnia, situação conjugal, escolaridade, classe econômica e condições de moradia. A avaliação da classe econômica ocorreu com base nos critérios de classificação econômica da Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa 16, utilizando um escore composto por 11 itens que avaliam os bens e serviços de consumo e a escolaridade da pessoa considerada o chefe da família. Já as condições de moradia foram avaliadas por escore de situação ambiental composto pelo número de pessoas no domicílio, tipo de material predominante no piso da casa, forma de abastecimento de energia e de água e pela existência de esgotamento sanitário e de coleta de lixo 17.
O uso de álcool foi avaliado com o instrumento TWEAK (Tolerance, Worry, Eye-opened, Amnesia & C/Kut-down), validado e adaptado transculturalmente para uso no Brasil 18. Foi considerado uso abusivo quando o resultado do escore foi superior a dois pontos. Para a avaliação da ocorrência de violência física grave entre parceiros íntimos, foi utilizado o instrumento Revised Conflict Tactics Scales (CTS2), também validado e adaptado transculturalmente para uso no Brasil e amplamente utilizado nos estudos sobre violências 19,20,21. A “violência física grave contra a mulher” foi considerada quando, ao menos, um item da escala foi positivo. Já a classificação como “coocorrência de violência física grave” se deu quando houve positividade na escala para ambos os direcionamentos, e a existência de “situação de violência física grave”, quando houve positividade na escala na condição de perpetradora ou de vítima. A aferição da violência ocorreu para o período dos últimos três anos do estudo, considerando a relação atual como base de referência.
Análise de dados
A limpeza do banco e o processamento estatístico foram realizados no software Stata SE 13 (StataCorp LP, College Station, Estados Unidos), primeiramente de modo univariado, com vistas a conhecer a distribuição dos dados. A análise bivariada utilizou o cálculo dos respectivos OR, IC95% e valores de p. As variáveis relacionadas à faixa etária e à classe econômica foram tratadas em sua forma contínua.
Todas as variáveis pertencentes às diferentes dimensões propostas no modelo teórico que apresentaram valores abaixo do ponto de corte (p ≤ 0,25) na análise bivariada foram utilizadas. Foram avaliadas as possíveis interações entre as variáveis independentes (aspectos sociodemográficos e uso abusivo de álcool) e as variáveis correspondentes às violências físicas graves. Os modelos finais de regressão logística foram compostos pelos confundidores identificados, e as interações foram testadas com base no modelo teórico-conceitual, ou seja, utilizando as variáveis de escolaridade e de consumo abusivo de álcool.
Aspectos éticos
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Universitário Pedro Ernesto, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, por meio do CAAE 01724512.6.0000.5259. Obedecendo aos preceitos éticos das pesquisas que envolvem seres humanos, foram utilizados Termos de Consentimento Livre e Esclarecido para todas as participantes, esclarecendo os objetivos, riscos e benefícios do trabalho antes das assinaturas. Foram garantidos o anonimato, a privacidade das mulheres e sua retirada da entrevista a qualquer tempo.
A partir das reflexões éticas e metodológicas de pesquisas envolvendo mulheres em situações de violência, optou-se pela participação de entrevistadores exclusivamente do sexo feminino, a fim de proporcionar uma interação mais confortável 22,23. A aproximação prévia com as equipes e a discussão minuciosa da dinâmica de trabalho de campo permitiram melhor organização da coleta de dados, especialmente porque as unidades mantiveram a normalidade do seu funcionamento, destinando um ambiente reservado para a realização das entrevistas. Também foi articulada uma rede de suporte para todas as respondentes, viabilizando, quando aplicável, o agendamento para a realização do exame de rastreio e a referência para os serviços de assistência às mulheres em situação de violência.
Resultados
A média de idade das participantes do estudo foi de 44 anos (IC95%: 43,1-44,9), com 40,1% (IC95%: 36,4-44,0) acima de 40 anos. A maior parte das mulheres se declarou parda ou preta (negra), casada, com menos de oito anos de estudo, pertencente à classe econômica C e vivendo em boas condições de moradia. Foram observadas relações estatisticamente significantes entre o desfecho e as variáveis: faixa etária e escolaridade. Tendo em vista a preservação da forma de entrada no modelo de regressão, também foi apresentado o cálculo dos respectivos OR para as variáveis “faixa etária” e “classe econômica” em sua forma contínua, sendo, respectivamente, 1,0 (IC95%: 1,0-1,0; p = 0,001) e 0,99 (IC95%: 0,9-1,0; p = 0,708), bem como para a variável raça/cor em seu formato original, ou seja, com todas as categorias. A
Tabela 1 Caracterização da amostra e análise bivariada entre a variável dependente (inadequação do rastreio do câncer do colo do útero) e os aspectos sociodemográficos e o uso abusivo de álcool, em mulheres cobertas pela Estratégia Saúde da Família. Nova Iguaçu, Rio de Janeiro, Brasil, 2013.
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Observa-se que tanto o abuso perpetrado contra as mulheres (ORbruta = 2,1; IC95%: 1,1-4,1) como a coocorrência das violências (ORbruta = 3,0; IC95%: 1,2-7,4) apresentaram significância estatística. Destaca-se que a coocorrência apresentou elevação no OR (ORajustada = 3,8; IC95%: 1,4-9,8) após ajuste pelas variáveis faixa etária, raça/cor e condições de moradia
Tabela 2 Distribuição, análise bivariada e modelo de ajuste entre as variáveis independentes de interesse (formas de violência física grave) e a variável dependente (inadequação do rastreio do câncer do colo do útero), em mulheres cobertas pela Estratégia Saúde da Família. Nova Iguaçu, Rio de Janeiro, Brasil, 2013.
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A maior modificação de efeito ocorreu entre a violência física grave contra a mulher e o uso abusivo de álcool pela usuária (OR = 10,2; IC95%: 1,8-56,4). As interações entre a coocorrência de violência física grave e o tempo de estudo inferior a oito anos (OR = 6,3; IC95%: 1,8-22,1), o uso abusivo de álcool pela mulher (OR = 8,5; IC95%: 1,4-50,7) e pelo parceiro (OR = 6,3; IC95%: 1,6-24,1) também foram significativas
Tabela 3 Resultados das odds ratio (OR) ajustadas nas análises multivariadas entre as formas de violência física grave e a inadequação do rastreio do câncer do colo do útero na Estratégia Saúde da Família, em função do tempo de estudo da mulher e do uso abusivo de álcool. Nova Iguaçu, Rio de Janeiro, Brasil, 2013 (N = 634).
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Discussão
O rastreamento sistemático do câncer do colo do útero é alvo de inúmeras investigações que visam iluminar as possíveis barreiras de acesso e utilização de serviços e o estado atual do conhecimento ainda apresenta lacunas a serem preenchidas 24,25. A literatura traz poucos trabalhos que se debruçam sobre as relações de causalidade envolvidas com a inadequação do rastreio dessa neoplasia, tornando relevantes os achados aqui descritos.
Duas formas de violência íntima apresentaram positividade nas relações de risco com a inadequação do rastreamento, independente de outros fatores investigados. A violência física perpetrada contra a mulher elevou o risco de não realização do exame em duas vezes, enquanto a coocorrência aumentou em cerca de quatro vezes as chances para a inadequação do exame, quando comparado com mulheres não expostas. Embora haja certo ineditismo no estudo desses fatores de risco, outros trabalhos já apontam a influência negativa da ocorrência da violência nos cuidados à saúde que necessitam de regularidade na frequência aos serviços. A violência física perpetrada contra gestantes parece estar intimamente relacionada com a má qualidade de pré-natal, sugerindo a necessidade de acompanhamento mais frequente e reforçando a atenção e garantia de acesso das mulheres vítimas 14,26. Trabalho semelhante aponta para as relações de risco entre o abuso físico entre parceiros íntimos e o acompanhamento de crianças em unidades básicas de saúde, trazendo como reflexão que o cuidado desempenhado preferencialmente pelas mulheres pode sofrer influência do nível de autonomia e da capacidade de mobilizar e gerenciar os recursos necessários para essas práticas de cuidado 27. Os danos gerados pelo ambiente familiar conflituoso têm sido entendidos como circular, ou seja, todos aqueles que compõem o espaço microssocial sofrem diante dessas vivências, refletindo em piores indicadores de saúde 28,29. A mensagem a ser incorporada pelos profissionais de saúde seria que mulheres em situação de violência íntima podem ter maiores dificuldades em manter ações de cuidado regular para elas e seus dependentes, principalmente nas proximidades do domicílio pela maior visibilidade.
Um exercício que parece interessante é a reflexão do medo vivenciado pela mulher nas situações em apreço, já que esse sentimento pode estar relacionado à própria realização do exame e ao que decorre do processo de vitimização pelas situações de violência íntima. O medo relacionado ao exame pode ser produzido pela expectativa de dor durante o procedimento e estar associado ao próprio examinador 12. A situação de violência também evoca baixa autoestima, vergonha e medo, que podem resultar em mudanças de comportamento, ampliando o isolamento e a dificuldade de autocuidado e do cuidado com o outro 29,30,31,32. A maneira como essa combinação de sensações negativas pode estar potencializando aspectos do cuidado com a saúde ainda merece maior aprofundamento.
As características de funcionamento da ESF possuem a singular possibilidade de aproximação com o território, favorecendo a construção de vínculos entre usuários e equipes de saúde 33. A própria visita domiciliar pode se apresentar como ferramenta para a prevenção de violências, uma vez que possibilita a identificação de vulnerabilidades no próprio contexto familiar 34. Por outro lado, esses mesmos atributos podem atuar como barreiras em situações de conflito. As mulheres que vivenciam a violência íntima acabam por frequentar com menor assiduidade alguns serviços de saúde na tentativa, mesmo que subjetiva, de manter certo grau de invisibilidade 13,26. O (re)conhecimento da dinâmica familiar violenta pode ser desnudado pelas visitas domiciliares e pela proximidade com a equipe, levando ao afastamento das usuárias. Ainda persiste a visão social de que a mulher permanece na relação violenta por escolha, sendo difícil evitar juízos de valor pelos profissionais, com possibilidade de revitimização e afastamento 35. Quando se observa um risco três vezes maior para a não realização do exame entre as respondentes, percebe-se a necessidade de contemplar aspectos das resoluções de conflito familiares nas ações de busca ativa e demais atividades desenvolvidas pela ESF.
Em relação à dimensão sociodemográfica, os resultados apontam para a idade e a escolaridade como fatores de riscos associados à inadequação do rastreio, especialmente em faixas etárias superiores aos cinquenta anos e em mulheres com menos de oito anos de estudo. Alguns autores já haviam evidenciado preocupações com os extremos de idade do público-alvo, especialmente pela aproximação com o período da menopausa e o maior intervalo adotado entre as consultas ginecológicas, com menor exposição às ações de prevenção 25,36. A aceleração da transição demográfica em curso no país amplia numericamente esse subgrupo de maior vulnerabilidade, sendo necessário repensar práticas de captação a ele destinadas 37,38.
A escolaridade como importante fator de risco para a não realização do exame parece estar associada às questões de vulnerabilidade social 25,36. A baixa escolaridade pode afetar o acesso e a compreensão das informações relacionadas às ações de prevenção em saúde, além de dificultar a tomada de decisões mais seguras em relação ao próprio corpo, consolidando-se, cada vez mais, como um ponto a ser considerado nos atendimentos. Vale destacar a expressiva ação modificadora de efeito das variáveis escolaridade e uso abusivo de álcool pela mulher e seu parceiro, elevando os riscos para todas as formas de violência analisadas. Já é consenso na literatura a existência de interação entre vulnerabilidade social, uso abusivo de álcool e ocorrência de violência íntima, e os achados aqui apresentados reforçam a necessidade de abordagem diferenciada dessas situações 13,39. A participação do álcool como barreira de acesso pode guardar relações com a gravidade dos conflitos familiares e com a própria perda de autonomia da mulher em relação às suas decisões de cuidado 40,41.
Os resultados apresentados devem ser interpretados à luz de suas limitações. A primeira diz respeito à ausência de aferição da temporalidade entre a ocorrência da violência e a inadequação do rastreio do câncer do colo uterino. A opção metodológica deste estudo não contemplou a interação relacionada à janela temporal entre os eventos, considerando como positivos todos aqueles ocorridos nos três últimos anos. Futuros trabalhos podem estabelecer novos modelos analíticos, inserindo diferentes intervalos temporais no modelo de cadeia causal proposto. A seleção de usuárias da ESF permitiu investigar apenas aquelas que possuíam o mínimo de frequência nas unidades de saúde, já que o recrutamento ocorreu nesse local. Mesmo com a adoção de medidas que controlaram a definição de casos a partir do relato de não realização do exame colpocitológico nos últimos três anos, a violência íntima pode agir com maior força em mulheres que sequer frequentam esses serviços. Essa modificação de efeito é própria de estudos realizados em ambulatórios ou similar, sendo necessária a realização de inquéritos domiciliares para que se possa reconhecer o risco produzido pela exposição à violência também em mulheres que estão distantes das unidades de saúde.
Tendo em vista a dificuldade de produzir uma lista de mulheres que frequentam os serviços de forma não programada, que não realizaram agendamento prévio para o atendimento, empregou-se a técnica de amostragem não probabilística, por conveniência, entrevistando aquelas presentes aos serviços durante o período do estudo. Parece importante considerar que essa estratégia pode ter influenciado positivamente em aspectos da validade externa, por trazer informações a partir de abordagem baseada em clientela espontânea e sem a adoção prévia de critérios que selecionassem apenas subgrupos baseados em queixas ou condições específicas. Dessa forma, os resultados apresentados trazem uma aferição mais abrangente e aproximada da experiência vivenciada no âmbito da ESF, com capacidade de generalização para outras realidades semelhantes, considerando as características e especificidades de cada local.
Mesmo frente às limitações, os resultados parecem ampliar as possibilidades de entendimento para a inadequação da realização do exame de rastreio ao considerar dimensões relacionadas à dinâmica familiar e sentimentos próprios da mulher que vivencia violência. Além de reforçar a faixa etária como barreira na utilização dos serviços, já demonstrado em estudos anteriores, a violência física grave também se constituiu como um importante fator de risco quando perpetrada pelo parceiro ou nas relações de coocorrência de situações abusivas, reforçando a ideia de circularidade das consequências geradas por esses atos 42. A baixa escolaridade da mulher e o abuso de álcool pelo casal, quando associados ao fenômeno das violências, também ampliou sobremaneira os riscos para a inadequação do rastreamento.
A avaliação cuidadosa e empática da dinâmica familiar ainda não é tarefa fácil, mesmo em serviços estruturados de maneira diferenciada, a exemplo da ESF. Parece imprescindível garantir um olhar ampliado para as mulheres que não realizam adequadamente seus exames de rastreio, uma vez que o absenteísmo pode desvelar demandas que não são facilmente percebidas em ações de rotina no âmbito da saúde. O desenvolvimento de estratégias comunitárias que articulem redes de apoio - com a participação dos usuários e equipamentos socais locais - também poderia contribuir para que essa clientela se aproximasse das equipes, que também carecem de formação adequada para atuar frente a essas situações complexas e tão singulares.
Agradecimentos
À Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj) pelo financiamento deste estudo.
Referências
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