Cadernos de Saúde Pública
ISSN 1678-4464
33 nº.Suplemento 3
Rio de Janeiro, 2017
ARTIGO
Conhecimento e uso de cigarros eletrônicos e percepção de risco no Brasil: resultados de um país com requisitos regulatórios rígidos
Tânia Maria Cavalcante, André Salem Szklo, Cristina de Abreu Perez, James F. Thrasher, Moyses Szklo, Janine Ouimet, Shannon Gravely, Geoffrey T. Fong, Liz Maria de Almeida
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311X00074416
Cigarros Eletrônicos; Nicotina; Produtos do Tabaco
Introdução
O uso de Sistemas Eletrônicos de Distribuição de Nicotina (ENDS, em inglês), dos quais os cigarros eletrônicos (e-cigs) são os mais populares, tem aumentado rapidamente em alguns países 1. A comunidade de controle do tabaco está fortemente dividida nas questões de segurança de cigarros eletrônicos, eficácia para a cessação do tabagismo 2,3, se cigarros eletrônicos promovem o uso de cigarros entre jovens 4,5, e como esses dispositivos devem ser regulados 6,7,8,9,10. Apesar da falta de evidências, muitos países proibiram a comercialização de cigarros eletrônicos 11 e, na ausência de dados de qualidade de longo prazo que possam embasar recomendações baseadas em evidência, a Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco da Organização Mundial da Saúde (CQCT-OMS) recomenda que as regulações devem “impedir a promoção de ENDS e prevenir sua adoção por não-fumantes, gestantes e jovens; minimizar riscos potenciais à saúde para usuários e não-usuários de ENDS; proibir a veiculação de alegações de saúde não comprovadas sobre ENDS; e proteger esforços já existentes de controle do tabaco de interesses comerciais ou de outros tipos da indústria do tabaco” 12.
Em 2009, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) 13 publicou uma resolução tornando ilegal a comercialização, importação ou propaganda de ENDS “a não ser que o fabricante forneça evidências científicas sobre a segurança do dispositivo como um substituto para produtos de tabaco convencionais e/ou sua eficácia como um dispositivo para a cessação do tabagismo”. A resolução inclui diferentes tipos de ENDS, cartuchos líquidos e acessórios, independentemente da quantidade de nicotina que contêm 13. Até o momento presente, nenhuma petição foi feita à Anvisa com base na resolução. Assim, desde 2009, a venda de cigarros eletrônicos é ilegal no Brasil. Entretanto, há evidências de que cigarros eletrônicos estão sendo vendidos ilegalmente pela Internet 14 e por vendedores de rua 15,16,17,18,19.
Dada a sua presença no Brasil, é importante medir o uso e percepções de e-cigs entre fumantes brasileiros. Os objetivos deste estudo foram analisar as seguintes medidas-chave em uma amostra probabilística de fumantes em três grandes cidades brasileiras: (1) conhecimento sobre existência de cigarros eletrônicos, uso na vida, e uso recente (≤ 6 meses); (2) percepção de risco sobre cigarros eletrônicos comparados a cigarros convencionais; e (3) fatores correlacionados ao conhecimento e percepção de risco.
Métodos
Desenho do estudo e procedimentos
Uma análise transversal foi feita usando a amostra de reposição de fumantes da Onda 2 do Inquérito Internacional sobre Controle do Tabaco (ITC Brasil). Detalhes da metologia foram relatados em outros artigos 20,21. Na Onda 2, novos respondentes foram recrutados por meio de um protocolo de discagem randomizada em três cidades (Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre) para substituir respondentes da Onda 1 que foram perdidos no seguimento. As entrevistas foram realizadas em português pelo telefone entre outubro de 2012 e fevereiro de 2013.
Amostra do estudo
A amostra de reposição de fumantes é uma amostra probabilística de 727 adultos (≥ 18 anos) que, na época do estudo, fumavam cigarros pelo menos uma vez ao mês e haviam fumado pelo menos 100 cigarros. Seis foram excluídos porque não responderam a questão sobre conhecimento de cigarros eletrônicos. As taxas de resposta e cooperação foram 22,8% e 98,9%, respectivamente.
Para esta análise, usamos apenas a amostra de reposição de fumantes devido a diferenças em como “uso recente de cigarros eletrônicos” foi avaliado no inquérito de reposição em comparação ao inquérito de contato (aqueles que haviam participado da onda anterior do estudo). Ademais, os perfis demográficos das duas amostras são muito diferentes
Tabela 1 Diferenças nas variáveis demográficas e relacionadas ao comportamento de fumar entre as amostras de recontato * e reposição da Onda 2 do Inquérito Internacional sobre Controle do Tabaco (ITC Brasil).
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Medidas
Variáveis demográficas incluíram: sexo, idade, educação (Ensino Fundamental ou menos, Ensino Médio incompleto, Ensino Médio) e renda familiar mensal que foi classificada como baixa (< 3 salários mínimos, ou seja, menos do que R$ 1.866, equivalente a < USD 894), moderada (3-9 salários mínimos, ou seja, uma renda entre R$ 1.866 e R$ 5.598, equivalente a uma renda entre USD 894 e USD 2.683), ou alta (10 ou mais salários mínimos, ou seja, uma renda de R$ 5.598 ou mais, equivalente a USD 2.683 ou mais).
As variáveis relacionadas ao fumo incluíram: frequência de fumo (1 = não diariamente; 2 = diariamente, fumante “leve a moderado”, 3 = diariamente, fumante “pesado”), em que fumar diariamente significa fumar cigarros convencionais ao menos uma vez ao dia; Heaviness of Smoking Index (HSI) 22,23, uma escala que mede o nível de dependência de nicotina com base em dois itens (o número de cigarros fumados por dia e o tempo até o primeiro cigarro do dia), foi derivado apenas para os que fumavam diariamente, com uma pontuação total de 0 a 6 (HSI ≤ 3 = fumo leve a moderado e HSI 4-6 = fumo alto a muito alto); e intenção de parar de fumar (dentro dos próximos 6 meses vs. num período mais longo ou nunca).
Participantes responderam questões sobre cigarros eletrônicos:
Conhecimento: “você já ouviu falar em cigarros eletrônicos ou e-cigarros?” (Respostas: sim ou não);
Aos que responderam sim a essa questão, foi perguntado:
Uso na vida: “você já usou um cigarro eletrônico alguma vez?” (Respostas: sim ou não);
Uso recente: “nos últimos 6 meses, você usou ou experimentou algum dos seguintes produtos: cigarro eletrônico?” (sim ou não);
Percepção do risco à saúde de ENDS comparado a cigarros convencionais: “você acredita que cigarros eletrônicos são mais perigosos, igualmente perigosos ou menos perigosos para a saúde do que cigarros convencionais?” Essa variável foi então categorizada como “cigarros eletrônicos são menos perigosos do que cigarros convencionais” vs. “nenhuma diferença” ou “mais perigosos do que cigarros convencionais” ou “não sabe”.
Análises estatísticas
Estatísticas descritivas foram estimadas usando dados não ponderados. Todas as outras estimativas foram ponderadas para refletir a prevalência populacional do conhecimento, uso na vida e uso recente de cigarro eletrônico. Modelos de regressão logística estimaram a associação entre covariáveis sociodemográficas e de fumo e conhecimento e percepção de risco de cigarro eletrônico (“menos perigosos do que cigarros convencionais” vs. outras respostas; limitado aos que tinham conhecimento de cigarros eletrônicos). Os modelos de regressão foram ajustados para: sexo, idade (contínua), educação, renda, cidade de residência, intenção de parar de fumar, e frequência de fumo. Os dados foram analisados usando Stata 12.0 (StataCorp LP, College Station, Estados Unidos), levando em consideração o desenho complexo da amostra.
Resultados
As diferenças nas variáveis demográficas e relacionadas a fumo entre as amostras de recontato e reposição da Onda 2 encontram-se na
Amostra de reposição - perfil sociodemográfico e de fumo
Tabela 2 Odds ratio (OR) bruto e ajustado do conhecimento sobre cigarros eletrônicos, segundo características sociodemográficas e comportamento de fumar. Apenas fumantes de cigarros, amostra de reposição da Onda 2 do Inquérito Internacional sobre Controle do Tabaco (ITC Brasil) *.
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Conhecimento: 37,4% (249/721; IC95%: 32,8%-42,3%) de fumantes atuais conheciam cigarros eletrônicos. Fumantes mais novos e com níveis educacionais mais altos tinham maior probabilidade de conhecer cigarros eletrônicos do que os demais participantes (valor de p ajustado = 0,042 e < 0,001, respectivamente)
Uso na vida: 9,3% (48/721; IC95%: 6,5%-13,3%) de fumantes relataram ter experimentado cigarros eletrônicos.
Uso recente: 4,6% (24/721; IC95%: 2,8%-7,4%) de fumantes relataram ter usado ou experimentado cigarros eletrônicos nos últimos 6 meses.
Percepção de risco comparado a cigarros convencionais: Entre fumantes que conheciam e-cigs, 44,4% (n = 103/249; IC95%: 36,8%-52,3%) acreditavam que e-cigs eram menos perigosos do que cigarros convencionais (ou seja, tinham “baixa percepção de risco”), 20,6% (n = 57/249) acreditavam que eram igualmente perigosos, 2,7% (n = 7/249) acreditavam que eram mais perigosos e 32,4% (n = 82/249) não sabiam. “baixa percepção de risco” estava associada a ter maior nível educacional, ter usado/experimentado cigarros eletrônicos recentemente, e ser um fumante diário “leve-moderado”, em comparação com um fumante diário “pesado” (valor de p ajustado = 0,24, < 0,001 e 0,047, respectivamente)
Tabela 3 Odds ratio (OR) bruto e ajustado da percepção de risco (de cigarros eletrônicos em comparação a cigarros convencionais), relacionado ao uso de cigarros eletrônicos *, segundo características sociodemográficas e comportamento de fumar. Apenas fumantes de cigarros, amostra de reposição da Onda 2 do Inquérito Internacional sobre Controle do Tabaco (ITC Brasil) **.
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Discussão
Este estudo analisou o conhecimento e uso de cigarros eletrônicos no Brasil, um país com requisitos regulatórios fortes. A porcentagem de fumantes brasileiros que conheciam cigarros eletrônicos (37,4%) foi mais baixa do que em outros países ITC sem requisitos similares (Holanda: 88%; Estados Unidos: 73%; República da Coreia: 79%; e Reino Unido: 54%). Contudo, o uso na vida (9%) não foi muito diferente quando comparado a esses mesmos países (18%, 12%, 10% e 15%, respectivamente). Em contraposição, dados de 2009 da China, um país sem proibição de cigarros eletrônicos, mostraram menor conhecimento (31%) e uso na vida (2%), provavelmente atribuível a fatores de mercado no país e ao fato de o inquérito ser mais antigo (de 2009) 24. Comparações entre países devem ser interpretadas com cautela devido a fatores específicos a cada um deles que podem contribuir para a variabilidade de resultados.
Entre fumantes que conheciam cigarros eletrônicos no Brasil, 44,4% acreditavam que eles eram menos perigosos quando comparados a cigarros convencionais. Um estudo realizados nos Estados Unidos (sem proibição de ENDS) em 2012-2013 demonstrou que 51% de fumantes acreditavam que e-cigs eram menos perigosos quando comparados a cigarros convencionais 25. É difícil interpretar os dados, mas, aparentemente, uma proporção considerável de fumantes em países com e sem regulações rígidas acreditam que cigarros eletrônicos são menos perigosos do que cigarros convencionais.
Este estudo é o primeiro a examinar fatores correlacionados a conhecimento de cigarro eletrônico e percepção de risco no Brasil. Fumantes mais novos e com maior nível educacional tinham maior probabilidade de conhecer cigarros eletrônicos, como em outros países 26. No Brasil, esse grupo tem maior acesso à Internet 27 e pode ser mais frequentemente alvo de anúncios na Internet e de promoção de novidades 28. Respondentes com “baixa percepção de risco” também tinham maior probabilidade de terem nível educacional mais alto.
Atualmente, não há consenso sobre o impacto geral de cigarros eletrônicos na saúde da população 29,30. O impacto geral populacional de cigarros eletrônicos dependerá de vários fatores, nenhum dos quais foi estabelecido até o momento, incluindo a medida em que cigarros eletrônicos afetam a saúde no curto e longo prazo, seu impacto nas tentativas e sucesso de cessação de tabagismo, se promovem o fumo entre os jovens, e em que medida a presença de cigarros eletrônicos e a propaganda e marketing desses produtos pode renormalizar cigarros e outros produtos de tabaco.
Ainda que o Brasil proíba a comercialização, importação e propaganda de cigarros eletrônicos, existe uma cláusula na resolução que o permitirá se for comprovado que cigarros eletrônicos são seguros/efetivos para a cessação do tabagismo. Estudos de longo prazo de qualidade são necessários para informar recomendações baseadas em evidências que possam ser adotadas pelos Estados-Membros da CQCT-OMS.
Limitações
Devido ao caráter transversal dos dados do estudo, não foi possível avaliar o conhecimento e percepções sobre cigarros eletrônicos antes e depois da adoção da resolução da Anvisa. O inquérito usou um protocolo de amostragem por linha de telefone fixo e fumantes sem telefone fixo tem maior probabilidade de pertencerem a grupos de nível socioeconômicos mais baixo e podem responder de forma diferente do que fumantes de grupos de nível socioeconômico mais alto. O inquérito não distinguiu entre experimentação e uso contínuo de cigarro eletrônico e não avaliou se usuários usaram cigarros eletrônicos legalmente fora do Brasil. O inquérito foi realizado em três cidades brasileiras e, portanto, os resultados não podem ser generalizados para todo o país.
Conclusões
A despeito de requisitos regulatórios rígidos no Brasil, 4,6% dos fumantes adultos da amostra relataram ter usado cigarro eletrônico ao menos uma vez nos últimos 6 meses. Dos que conheciam cigarro eletrônico, cerca de 44% acreditavam que cigarros eletrônicos eram menos perigosos do que cigarros convencionais. Estudos de longo prazo de qualidade são necessários para informar recomendações baseadas em evidências que possam ser adotadas pelos Estados-Membros da CQCT-OMS. Programas nacionais de vigilância sanitária devem incluir questões sobre uso e percepções de ENDS dentro de seus respectivos ambientes regulatórios.
O que este estudo acrescenta
Este estudo descreve conhecimento de cigarros eletrônicos, percepção de risco e fatores correlacionados a essas medidas no Brasil, um país de renda média com fortes políticas de controle de tabaco (nos últimos 20 anos) e com rígidas regulações de cigarros eletrônicos (desde 2009). É o primeiro estudo a examinar fatores correlacionados à percepção sobre cigarros eletrônicos no Brasil.
Agradecimentos
A Mary McNally da Universidade de Waterloo pela contribuição à revisão do artigo.
Referências
Cadernos de Saúde Pública | Reports in Public Health
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