Cadernos de Saúde Pública
ISSN 1678-4464
33 nº.Suplemento 3
Rio de Janeiro, 2017
ENSAIO
Brasil: balanço da Política Nacional de Controle do Tabaco na última década e dilemas
Tânia Maria Cavalcante, Mariana Coutinho Marques de Pinho, Cristina de Abreu Perez, Ana Paula Leal Teixeira, Felipe Lacerda Mendes, Rosa Rulff Vargas, Alexandre Octávio Ribeiro de Carvalho, Erica Cavalcanti Rangel, Liz Maria de Almeida
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311X00138315
Hábito de Fumar; Indústria do Tabaco; Controle e Fiscalização de Produtos Derivados do Tabaco
Introdução
Desde 2005, o Brasil é Estado Parte da Convenção-Quadro para Controle do Tabaco (CQCT-OMS) 1, tratado internacional de saúde negociado sob os auspícios da Organização Mundial da Saúde (OMS) 2.
Por que um tratado internacional para enfrentar um problema de saúde pública? Desde a década de 1970, sucessivas Assembleias Mundiais de Saúde reconheciam as estratégias transnacionais de mercado de produtos de tabaco como principais determinantes da epidemia de tabagismo 3. Porém, somente em 1999, a 52º Assembleia Mundial de Saúde decidiu negociar a CQCT-OMS 4,5.
Entre outubro de 1999 e fevereiro de 2003 aconteceu um complexo processo coletivo de negociação permeado pelo embate entre interesses de saúde e interesses comerciais, já que participavam das negociações muitos países produtores de fumo, dentre eles o Brasil 6. Nesse cenário, o Brasil foi eleito por 192 países para presidir a negociação da Convenção, em reconhecimento a sua liderança no controle do tabagismo, apesar de ser um grande produtor de tabaco.
Em 2003, o texto final da CQCT-OMS 7 foi adotado pela 56º Assembleia Mundial de Saúde contendo um conjunto de ações multissetoriais e de cooperação agrupadas em dois enfoques: redução da demanda por produtos de tabaco e controle da oferta deles. O texto da CQCT-OMS traduziu na prática o reconhecimento de que isoladamente nenhum país conseguiria enfrentar as dinâmicas transnacionais do mercado de tabaco e de que a atuação apenas do setor saúde seria insuficiente para alcançar os objetivos da Convenção 8.
Em 2005, por ocasião da ratificação da CQCT-OMS pelo Brasil, muitas das suas medidas já estavam em maior ou menor grau implantadas. Atualmente, observa-se significativa redução na prevalência do tabagismo e da mortalidade por doenças tabaco-relacionadas como as cardiovasculares, respiratórias crônicas e câncer de pulmão. No entanto, os desafios ainda são muitos, em especial os colocados pela cadeia produtiva do tabaco controlada por grandes companhias transnacionais que fizeram do Brasil um grande produtor e o maior exportador desse produto, argumento esse amplamente usado para obstruir a Política Nacional de Controle do Tabaco (PNCT).
A própria ratificação da CQCT-OMS pelo Brasil envolveu um longo processo de enfrentamento entre a saúde e o setor produtivo de tabaco. A indústria do tabaco havia investido em um amplo movimento para disseminar a ideia de que a Convenção proibiria o cultivo de tabaco e de que a adesão do país ao tratado acarretaria em forte impacto negativo nos meios de vida de 200 mil famílias produtoras de fumo 9,10. Só depois de dois anos (2004 e 2005) de debates em audiências públicas em regiões produtoras, o Senado Federal aprovou a ratificação da CQCT-OMS em outubro de 2005 (Decreto Legislativo nº 1.012), posteriormente promulgada por Decreto Presidencial em janeiro de 2006 11,12. Vários estudos analisaram o processo histórico de ratificação da CQCT-OMS pelo Brasil e ofereceram mais detalhes sobre os conflitos que o permearam nesse período 13,14,15,16. O longo processo levou o Brasil a ser o 100º país a ratificar o tratado, um retardo que traduz uma tentativa da indústria do tabaco de desqualificar e enfraquecer a CQCT-OMS pela exclusão do país que presidiu todo o processo de sua negociação.
O presente artigo analisa a evolução da CQCT-OMS no Brasil, desde sua ratificação em 2005 até 2015, seus principais resultados e desafios, destacando o controle de toda a cadeia produtiva do tabaco como fonte de poder para a indústria do tabaco interferir nas políticas de controle do tabagismo. Também analisa como se deu essa interferência contra a medida que proibiu o uso de aditivos para dar sabor aos produtos de tabaco. Para cumprir o que se pretende, o texto se organiza tomando como referência a Convenção, identificada por seus respectivos artigos.
A PNCT desde a ratificação da CQCT-OMS: governança, status e resultados
Ao ratificar a Convenção, muitas de suas medidas já estavam em maior ou menor grau implantadas no Brasil. Desde 1989 o Ministério da Saúde, por intermédio de seu Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva (INCA), articulava ações nacionais para controle do tabagismo. Tendo como eixo um processo de estruturação e capacitação junto às Secretarias Estaduais para a descentralização das ações e articulação de parcerias com outras organizações governamentais e não governamentais, essa iniciativa resultou em uma sólida rede de governança das ações nacionais de controle do tabaco 17.
Com a ratificação do tratado, o PNCT ganhou mais força, ao ser recolocado como parte de uma Política de Estado. O PNCT é norteado pela CQCT-OMS e legitimado pela obrigação de o Estado Brasileiro adotar seus princípios e obrigações.
Em 2003, com o término da negociação, um decreto presidencial criou a Comissão Nacional para Implementação da Convenção-Quadro para Controle do Tabaco (CONICQ) com a atribuição de promover a ratificação da Convenção e articular uma agenda de Estado para o seu cumprimento, alinhado ao art. 5.2 da CQCT-OMS - que trata da criação de um mecanismo de coordenação nacional para controle do tabaco. Hoje, integram a CONICQ 18 setores do Governo Federal. O Ministro da Saúde é seu Presidente, cabendo ao INCA o papel de sua Secretaria Executiva 18.
Nos 10 anos que sucederam a ratificação da Convenção, medidas nacionais de controle do tabaco foram aperfeiçoadas, ampliadas e novas foram adotadas. No entanto, muitas dessas conquistas só aconteceram depois de longos processos de enfrentamento de estratégias obstrucionistas da indústria do tabaco.
O art. 49 da Lei Federal nº 12.546 19, de dezembro de 2011, foi um exemplo de uma árdua conquista no fortalecimento da implementação da CQCT-OMS em seus art. 6º (aumento dos impostos e preços dos produtos de tabaco), 8º (proteção contra os riscos do tabagismo passivo) e 13º (proibição da publicidade, promoção e patrocínio dos produtos de tabaco).
Até então, o art. 8º da CQCT-OMS regido pela Lei Federal nº 9.294 20, de julho de 1996, era parcialmente implementado, pois admitia espaços reservados para fumar em ambientes fechados (fumódromos). A partir de 2007, a CONICQ passou a envidar esforços para aperfeiçoar a lei federal a fim de proibir totalmente o ato de fumar em recintos coletivos (sem fumódromos), mas esbarrava em um forte lobby contrário promovido pela indústria do tabaco no Congresso Nacional. Em 2008, alguns estados brasileiros passaram a publicar leis estaduais alinhando-as às diretrizes da Convenção com a extinção dos fumódromos. Porém, ações judiciais movidas por organizações associadas a empresas de tabaco questionavam a constitucionalidade dessas leis por serem mais rígidas que a Lei Federal nº 9.294 vigente 21,22, mas tendo como motivação impedir o seu efeito cascata na redução do número de fumantes 23.
Vale registrar que o art. 49 da Lei Federal nº 12.546 surgiu com base em uma emenda apresentada à Medida Provisória nº 540 (MP 540), que havia sido encaminhada pelo governo federal ao Congresso Nacional, em agosto de 2011. A MP 540 tinha como objeto desonerar alguns setores econômicos e em contrapartida aumentava a carga tributária sobre cigarros 24. Contudo, a emenda proposta trazia retrocessos à PNCT, dentre eles, o esvaziamento do poder da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) de regular os produtos de tabaco. Por isso, na ocasião foi fortemente criticada e combatida por várias organizações de saúde e alguns parlamentares 25,26,27,28.
Depois de muitos debates, a emenda foi ajustada para atender às diretrizes da Convenção e aprovada em dezembro de 2011 como art. 49 da Lei Federal nº 12.546, que passou a proibir fumar em recintos coletivos sem exceções. No entanto, sua implementação ainda dependia de um decreto presidencial estabelecendo parâmetros para o seu cumprimento, como a definição do que seria um recinto coletivo: se apenas um espaço totalmente fechado ou algo que abrangesse também espaços como varanda, terraços. Apesar das intensas cobranças da sociedade 29,30, esse decreto só foi aprovado em maio de 2014 e seu teor tem sido questionado por especialistas da área de direito, uma vez que introduziu exceções não previstas na lei federal 31. Mesmo assim, foi uma grande vitória da saúde pública sobre as manobras obstrucionistas da indústria do tabaco, levando o Brasil a ser o primeiro da categoria de megacountries a tornar-se 100% livre da fumaça ambiental de tabaco 32.
Com a Lei Federal nº 12.546, a propaganda, que desde 2000 era proibida nos meios de comunicação, mas permitida nos pontos de venda (Lei Federal nº 10.167 de 2000), passou a ser proibida também nos pontos de venda, fortalecendo o cumprimento do art. 13 da CQCT-OMS. Entretanto, os fabricantes têm explorado cada vez mais as embalagens como peça de propaganda. Em razão disso, já estão em discussão estratégias para proibir a exibição das embalagens de produtos de tabaco nos pontos de venda como acontece em alguns países, assim como para implementar a padronização das embalagens em termos de cores e formatos conforme já ocorre na Austrália e, em breve, em vários países da Europa 33,34.
Quanto ao art. 6º da Convenção, desde 2007 a Secretaria da Receita Federal (SRF) já vinha adotando ajustes nos impostos federais sobre cigarros e gerando sucessivos aumentos nos preços desses produtos que, até então, eram um dos mais baratos do mundo 35. Em 2011, a Lei Federal nº 12.546 e o Decreto Presidencial nº 7.555 aumentaram o Imposto sobre Produto Industrializado sobre cigarros, gerando uma carga tributária entre 72% e 81% e um aumento dos preços finais desse produto ao consumidor - medida reconhecida como uma das mais efetivas para reduzir o tabagismo. Também instituiu a política de preços mínimos para os cigarros 36,37.
Em relação ao art. 11 da CQCT-OMS, desde 2001 o Brasil já adotava advertências sanitárias ilustradas com fotos ocupando 100% da face posterior das embalagens de cigarros e de outros produtos de tabaco 38. Com a Lei Federal nº 12.546, a partir de 2016, 30% da face anterior das embalagens também contará com a advertência: “este produto causa câncer”, impressa sobre uma tarja preta 39.
Já a implantação do tratamento para cessação de fumar, em cumprimento ao art. 14 da CQCT-OMS, até 2013 havia atingido 604 municípios com 1.300 unidades de saúde do SUS oferecendo o tratamento e atendendo em média 150 mil fumantes ao ano 40.
Quanto à regulamentação dos produtos de tabaco, em cumprimento aos art. 9 e 10 da CQCT, desde 2001 a Anvisa obriga os fabricantes a apresentarem uma lista de componentes dos seus produtos, proíbe o uso dos termos como baixos teores, light, ultra light e similares por levarem a percepção errônea de que existem cigarros mais seguros. Em 2012, proibiu os fabricantes de usarem aditivos em produtos de tabaco 41. Esse tema voltará a ser abordado no capítulo sobre as estratégias da cadeia produtiva do tabaco para interferir na PNCT.
O Programa Nacional de Diversificação em Áreas Cultivadas com Tabaco (PNDACT), desenvolvido sob a coordenação do Ministério do Desenvolvimento Agrário, cumpre a implementação do art. 17 (alternativas economicamente viáveis à produção de tabaco) da CQCT-OMS e é norteado pelos princípios do desenvolvimento rural sustentável da Política Nacional de Agricultura Familiar. Esse programa já atingiu cerca de 800 municípios e 45 mil famílias de fumicultores entre 2006 e 2013 42,43,44,45.
Nos últimos 20 anos, a prevalência de tabagismo na população acima de 18 anos caiu cerca 46% (passando de 34% em 1989 para 18,5% em 2008) 46. Vale salientar que em 2013 essa taxa caiu para 14,7% 47. Um dado surpreendente já que era esperada uma desaceleração dessa redução como acontece em vários países 48,49. No entanto, observou-se que nos últimos cinco anos a queda na prevalência de tabagismo foi quase a metade da observada em 20 anos, sinalizando um possível efeito catalisador da implementação nacional e global da CQCT-OMS. Outros estudos consubstanciam essa tendência de redução 50.
Uma edição especial do Lancet, em 2011, sobre a saúde no Brasil mostrou que a mortalidade atribuível às doenças crônicas não transmissíveis diminuiu 20% entre 1996 e 2007, sobretudo por causa das reduções em doenças cardiovasculares (31%) e respiratórias crônicas (38%), tendo esses resultados sido atribuídos em parte à redução do tabagismo no Brasil 51. Já o Atlas de Mortalidade por Câncer disponibilizado on-line pelo INCA 52 mostra que a taxa de mortalidade por câncer de pulmão entre homens ajustada por idade e pela população mundial caiu de 17,16 a cada 100 mil em 1999 para 15,54 por 100 mil em 2012. Porém, entre as mulheres, embora em patamares menores que entre homens, esse índice aumentou de 6,34 para 8,18 a cada 100 mil no mesmo período. Tal fenômeno pode ser explicado pelo fato de as mulheres terem começado a fumar mais tardiamente e em menor proporção do que os homens e ainda estarem sob o efeito de coorte dessa exposição.
A cadeia produtiva do tabaco e seu poder de interferência
O Brasil é o segundo maior produtor e maior exportador mundial de fumo, funcionando como um grande celeiro, articulado globalmente pelas mesmas companhias transnacionais que operam as estratégias para expansão do tabagismo 53. Vale salientar que não se trata apenas de um celeiro de produto agrícola, mas um celeiro de poder econômico e político.
Por essa razão, um dos principais desafios da PNCT é o poder de interferência da cadeia produtiva do tabaco que tem se intensificado ao longo dos últimos 10 anos, à medida que o Brasil avança na implementação da Convenção.
Atualmente, 98% da produção nacional de fumo concentra-se nos três estados da Região Sul do Brasil. A Região Nordeste responde por 2% da produção nacional 54.
Integram a cadeia produtiva do tabaco pequenos agricultores familiares que cultivam tabaco, usinas de processamento, fábricas de derivados de tabaco, distribuidores, exportadores e varejistas. Segundo a Associação dos Fumicultores do Brasil (Afubra), na safra 2013/2014, essa cadeia movimentou 2,2 milhões de pessoas no Brasil 55.
Diferentes companhias transnacionais de tabaco junto com empresas processadoras e exportadoras de fumo formam o elo mais forte dessa cadeia, que também é articulada globalmente 56.
No seu componente agrícola, a cadeia produtiva do tabaco funciona mediante um sistema de integração em que as empresas fumageiras garantem aos produtores os insumos para a atividade. Já os produtores garantem formalmente a venda integral e exclusiva da produção à empresa integradora, por meio de um contrato de compra e venda. Trata-se de uma dinâmica que permite que as empresas mantenham o controle da cadeia produtiva do tabaco desde a fase do cultivo do fumo até a venda da produção 57.
Nesse contexto, é importante ressaltar que os ciclos de consumo e de produção de produtos de tabaco são partes de um mesmo sistema que se retroalimentam de forma articulada pelas mesmas empresas transnacionais de tabaco
Figura 1: Dinâmica global evidenciando o poder da indústria do tabaco de articular o ciclo da produção e do consumo de tabaco.
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Grande parte dos produtores tem na produção de fumo sua principal atividade e representam o elo mais frágil da cadeia produtiva do tabaco, e também o mais estratégico para as companhias de tabaco porque: (1) a mão de obra barata da agricultura familiar garante os baixos custos da produção do fumo nacional, e com isso o poder da indústria de manter baixo o preço final dos cigarros e outros derivados do tabaco; e (2) o controle da produção agrícola representa “uma válvula de escape” para a indústria do tabaco, pois permite que transfira a carga de aumento de impostos ou prejuízos decorrentes da redução da demanda de tabaco para o preço que paga ao agricultor pelo quilo de fumo 58,59,60.
Esse jogo de interesses aumenta as vulnerabilidades econômicas dos fumicultores 61,62,63,64,65. Tal fato se dá, pois 85% da produção brasileira de fumo são exportadas e dependem muito mais de uma conjuntura de mercado internacional de tabaco do que nacional. E também porque até julho de 2015, 180 países haviam ratificado a Convenção e estavam implementando a maior parte de suas medidas e diretrizes, incluindo China e Rússia - os dois maiores consumidores de produtos de tabaco do mundo. Vários países já apresentam substantiva redução da prevalência de fumantes 66, e o Relatório Global de Progresso da Implementação da CQCT-OMS de outubro de 2014 destaca que “mais de dois terços das partes do tratado apresentaram redução na prevalência de tabagismo” 67.
O discurso de que a produção de fumo é promissora para a economia do país representa uma visão 68,69 descolada de um cenário global que já dá sinais de desaquecimento. Análises de monitores do mercado internacional para a indústria do tabaco projetaram para 2015 uma significativa redução de volume de vendas das quatro principais companhias transnacionais de tabaco, incluindo as que coordenam a cadeia produtiva do tabaco no Brasil e um significativo excesso na oferta global de tabaco, gerando uma queda abrupta de 30% nas receitas das principais companhias comerciantes de folha de tabaco 70. Esse quadro se manifesta no Brasil como queda de 24% nas exportações de folha de tabaco em 2014 em relação a 2013 e no “descarte” de fumicultores. Segundo dados da Afubra, em 2005 essa atividade envolvia quase 200 mil famílias de agricultores familiares, já em 2013/2014, a atividade envolveu 162 mil famílias 71. Mas o discurso de incentivo à produção de fumo é repetido como um mantra por organizações ligadas à cadeia produtiva do tabaco assim como por alguns parlamentares de regiões produtoras que atuam em bloco contra medidas para redução do tabagismo 72,73,74,75. Assim, as empresas de tabaco vão tecendo complexas relações de poder e influência e se fortalecendo econômica e politicamente. Vale salientar que o viés político dessa teia resulta particularmente das estratégias de apoio e financiamento de candidatos a cargos eletivos em nível municipal, estadual e federal, o que tem fortalecido a representatividade de parlamentares defensores dos interesses do setor fumo nos estados produtores e especialmente no Congresso Nacional 76,77,78,79,80.
Essas estratégias têm sido tão mais intensas e frequentes quanto mais o Brasil tem mostrado resultados positivos na redução do tabagismo, ressaltando a importância do art. 5.3 da CQCT-OMS, que se refere à obrigação dos seus Estados Membros de protegerem a sua política nacional de controle do tabaco de interferências indevidas da indústria do tabaco e de organizações a ela afiliadas.
Nessa perspectiva, será analisado um caso emblemático de interferência frontal contra a implementação de uma das diretrizes do art. 9º da CQCT-OMS (regulação do conteúdo dos produtos de tabaco): proibição do uso de aditivos em cigarros e outros produtos de tabaco pela Anvisa.
A reação da cadeia produtiva do tabaco frente à medida da Anvisa que proibiu o uso de aditivos em cigarros no Brasil
Desde o final de 2010, o Brasil tenta colocar em prática a diretriz da CQCT-OMS de restringir o uso de aditivos em cigarros e produtos similares aprovada pela 4º sessão da Conferência das Partes da CQCT-OMS (COP4) no Uruguai, em 2010 81.
Essa decisão teve como base estudos que mostram que os aditivos foram desenvolvidos pela indústria do tabaco, a partir da década de 70, como forma de minimizar o efeito aversivo causado pelo sabor desagradável do tabaco e a sensação de irritação provada pela sua fumaça na garganta, sobretudo dos iniciantes. Alguns aditivos buscam dar aos cigarros sabores adocicados, especialmente atraentes para adolescentes, e outros aumentam a capacidade da nicotina em causar dependência - como é o caso da amônia. Alguns estudos também mostram que esses aditivos aumentam o potencial de toxicidade dos produtos de tabaco 82,83,84,85.
Apesar disso, no Brasil, essa diretriz suscitou uma forte oposição articulada pela indústria do tabaco com o apoio de parlamentares e políticos das regiões fumicultoras. Iniciada como uma verdadeira campanha nacional de oposição a essa medida, mesmo antes da decisão da COP4 de adotar essa diretriz.
Nessa ocasião, representantes da indústria e parlamentares dos estados produtores do fumo fizeram lobby junto aos altos escalões do governo para tentar impedir que a delegação brasileira se posicionasse favoravelmente à aprovação da diretriz na COP4 86,87,88,89. Defendiam a ideia de que tal medida inviabilizaria a utilização do tabaco tipo burley para a fabricação de cigarros e impactaria negativamente sobre os meios de vida de 50 mil famílias de produtores desse tipo de tabaco no Brasil 90. O argumento era que esse tipo de tabaco necessitava da adição de açúcar para mascarar o seu sabor desagradável e a irritação causada por sua fumaça. Pressionaram inclusive o governo brasileiro a se juntar a outros países, para questionar o governo do Canadá perante o Comitê de Barreiras Técnicas da Organização Mundial do Comércio (OMC) sobre a proibição dos aditivos adotada por aquele país 91.
Durante o ano de 2010, a Conicq se dedicou a desconstruir as informações distorcidas pela indústria do tabaco sobre essa medida. Para esse fim, elaborou uma análise de situação que subsidiou o posicionamento da delegação do Brasil junto à COP4 92,93. Assim, o Brasil não só manteve sua posição de apoio à aprovação dessas diretrizes durante a COP4, como em novembro de 2010, a Anvisa colocou em consulta pública uma proposta de medida para proibir os aditivos 94,95. A reação da cadeia produtiva do tabaco foi forte: parlamentares federais, estaduais e municipais ligados à bancada do fumo iniciaram um movimento de pressão contra a iniciativa e várias audiências públicas foram realizadas nos estados produtores do sul para ampliar o movimento contra a Anvisa 96,97,98,99,100.
Um deputado federal chegou a apresentar um projeto de Decreto Legislativo sustando a Consulta Pública nº 112, da Anvisa (CP 112) 101. Vale salientar que esse parlamentar teve sua campanha financiada por empresa de fumo que opera no seu estado, Rio Grande do Sul 102.
Além da pressão política contra a Anvisa, a Afubra coordenou uma estratégia para retardar o processo de compilação e avaliação das contribuições feitas à CP pela Anvisa. Valendo-se da falta de informação e vulnerabilidade dos fumicultores, a Afubra conseguiu mobilizar 200 mil manifestações contra as medidas propostas 103. Para tal fim, não só organizou a logística de coleta das assinaturas como também o envio dessas “contribuições” para a Anvisa. A maioria delas contendo a mensagem “sou contra”. Com isso, a análise das contribuições pela Anvisa foi retardada em quase seis meses - um resultado que foi comemorado abertamente pela Afubra 104.
Além dessa interferência em âmbito nacional, o anúncio da CP da Anvisa sobre a proibição dos aditivos também suscitou reação internacional por parte de alguns países produtores que questionaram o Brasil no Comitê de Barreiras Técnicas da OMC. Segundo o relatório da reunião formal desse Comitê, “Produtores e exportadores das variedades de tabaco Burley e Oriental perceberam a proibição dos aditivos como uma proibição de produtos de tabaco ‘blended' [convencionalmente produzidos com essas variedades de tabaco e vários aditivos] no mercado brasileiro. Cerca de 15 membros disseram que essa regulação era mais restritiva ao comércio do que o necessário para alcançar os objetivos do Brasil. Isso foi particularmente importante para alguns países incluindo os países da África e países menos desenvolvidos (Zâmbia, Tanzânia, República Dominicana, Moçambique e Quênia) cuja renda nacional depende da venda de tabaco burley e oriental...” (tradução livre) 105.
Essa reação ilustra o alcance e o poder transnacional que o controle da cadeia produtiva de tabaco propicia às companhias multinacionais de fumo, de interferir por meio de acordos internacionais de livre comércio nas políticas de controle do tabaco de outros países, mesmo nos não produtores.
Apesar do forte movimento contra a medida, em março de 2012, a Anvisa publicou a Resolução da Diretoria Colegiada nº 14 (RDC) e proibiu a comercialização de produtos de tabaco com qualquer aditivo com propriedades flavorizantes ou aromatizantes. No entanto, a indústria do tabaco deflagrou uma série de ações judiciais. A principal delas foi deflagrada pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), que peticionou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.874 (ADI 4874), questionando o papel da Anvisa em regulamentar produtos de tabaco e, por consequência, a proibição dos aditivos. Em setembro de 2013, o Supremo Tribunal Federal concedeu liminar suspendendo a medida, situação que ainda vigora até o momento da submissão desse artigo 106.
Um aspecto digno de nota é que a ADI também colocou em xeque o papel da Anvisa de regular a comercialização de produtos e insumos que causam riscos para à saúde. Em entrevista, o então diretor presidente da Anvisa sintetizou a situação de ameaça que a ADI colocou sobre a legitimidade de a Anvisa regular produtos de interesse para a saúde: “a CNI, para atender à demanda de um setor da indústria - os fabricantes de cigarro - entrou contra o dispositivo regulatório que criou a Anvisa. Se os argumentos da ADI forem acatados pelo Supremo, os setores de medicamentos, alimentos e componentes médicos ficarão em um limbo normativo, em meio a um ambiente de extrema instabilidade jurídica. É a indústria da doença, a do cigarro, impedindo a indústria da saúde de funcionar” 107.
Em dezembro de 2013, a Anvisa instituiu um grupo de trabalho composto por especialistas nacionais e internacionais no assunto, com o objetivo de avaliar os aditivos utilizados nos produtos derivados do tabaco listados na Instrução Normativa/Anvisa 6/2013. Em agosto de 2014, o relatório final do grupo de trabalho recomendou que a RDC da Anvisa fosse reeditada para incluir na proibição o uso de açúcar, que havia sido excluído da lista de aditivos proibidos devido à forte pressão da indústria do tabaco 108,109.
Até o momento deste Ensaio, a ADI não foi julgada e a proibição dos aditivos encontra-se suspensa, ou seja, cigarros com aditivos podem ser comercializados no país.
Esse histórico ilustra a dinâmica de interferência da cadeia produtiva do tabaco e seu poder de atropelar evidências científicas e recomendações de instituições de saúde para manter a lucratividade dos seus negócios.
Considerações finais
Apesar dos avanços no controle do tabagismo, a situação de grande produtor de fumo ainda oferece imensos desafios para a saúde pública no Brasil. Além da responsabilidade social de desenvolver uma política de alternativas à produção de fumo para salvaguardar centenas de milhares de fumicultores de uma esperada redução global da demanda de fumo, a PNCT também enfrenta estratégias obstrucionistas da cadeia produtiva do tabaco cada vez mais intensas contra os necessários ajustes, especialmente os de caráter regulatório.
A cadeia produtiva do tabaco trabalha com a desinformação, a saber, que produzir tabaco ainda é uma grande oportunidade para o Brasil no comércio exterior e que medidas de controle do tabaco adotadas nacionalmente prejudicam essa dinâmica. Ao mesmo tempo buscam desqualificar a capacidade do PNDACT em prover “alternativas tão rentáveis quanto o tabaco”.
O poder organizativo da cadeia produtiva do tabaco tanto elege quanto derrota candidatos a cargos eletivos nas regiões produtoras. E essa é uma das razões pelas quais os argumentos da indústria do tabaco, embora falaciosos, intimidam politicamente todos aqueles que se dispuserem a se manifestar contra seus interesses 110,111,112.
Ao longo das últimas décadas, a cadeia produtiva do tabaco ampliou seu poder de alcance para as esferas estaduais e federais e no mínimo tem conseguido desacelerar as tomadas de decisão de gestores e parlamentares quanto às medidas necessárias para o fortalecimento da PNCT, inclusive do PNDACT.
Nesse contexto, é fundamental o entendimento de que, graças à interação econômica e política propiciada pela cadeia produtiva do tabaco, grandes corporações fumageiras ganham poder e influência política.
Assim, a implementação do art. 17 da CQCT-OMS (alternativas economicamente viáveis à produção de tabaco), que no Brasil acontece por intermédio do PNDACT, precisa ser fortalecida e entendida como um mecanismo para implementação do art. 5.3 da CQCT-OMS, pois ao reduzir o número de agricultores dependentes da produção de tabaco também restringirá o poder político das grandes companhias transnacionais de tabaco de interferir contra medidas para redução da demanda.
Agradecimentos
Ao Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva do Ministério da Saúde, Brasil, e às representações dos setores do Governo Federal na Comissão Nacional para Implementação da Convenção-Quadro para Controle do Tabaco (CONICQ) da Organização Mundial da Saúde.
Referências
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