Cadernos de Saúde Pública
ISSN 1678-4464
33 nº.Suplemento 3
Rio de Janeiro, 2017
REVISÃO
O impacto dos aditivos do tabaco na toxicidade da fumaça do cigarro: uma avaliação crítica dos estudos patrocinados pela indústria do fumo
Francisco José Roma Paumgartten, Maria Regina Gomes-Carneiro, Ana Cecilia Amado Xavier de Oliveira
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311X00132415
Hábito de Fumar; Publicidade de Produtos Derivados do Tabaco; Toxicidade
Introdução
Os cigarros modernos são sistemas otimizados de entrega de nicotina que envolvem muita tecnologia, e cuja fabricação inclui numerosas substâncias e materiais além de tabaco, papel e filtro. Os demais componentes dos cigarros que não o próprio tabaco, são geralmente chamados de “ingredientes”, enquanto o termo “aditivo” é utilizado para substâncias (com exceção do tabaco e dos resíduos de pesticidas) “...cuja utilização projetada resulta, ou pode-se esperar razoavelmente que resulte, direta ou indiretamente, em torna-lo componente, ou de alguma outra maneira afetar as características de qualquer produto derivado do tabaco” (definição da Food Drug and Administration, dos Estados Unidos) 1.
Antes de 1970, a indústria do tabaco usava poucos aditivos nos cigarros 2,3. Atualmente, a indústria reconhece a utilização de aproximadamente 600 aditivos na fabricação dos cigarros 2,3,4,5. Entre as substâncias comumente adicionadas aos produtos derivados do tabaco estão os flavorizantes e intensificadores (p.ex., cacau, alcaçuz, mentol, extratos de frutas), os umectantes (p.ex., propileno glicol, glicerol, sorbitol), diversos açúcares e compostos de amônio. Tais ingredientes são chamados coletivamente de revestimentos (casings) 4. Além disso, numa fase mais adiantada da fabricação, substâncias voláteis com aroma (p. ex., óleos essenciais de plantas) em uma base de álcool, conhecidas como sabores de cobertura (top flavors) ou coberturas (“topping”), também são aplicadas às misturas de tabaco para intensificar seus sabores e o aroma do maço 4. De acordo com o que tem sido relatado, os revestimentos e coberturas correspondem a 1%-5% e a cerca de 0,1%, respectivamente, do peso do tabaco no cigarro 4.
Os aditivos são usados principalmente nos cigarros americanos com misturas de fumos (blended) que são fabricados com tabaco do tipo Burley. Os cigarros feitos com tabaco do tipo Virgínia, que são constituídos basicamente de um único tipo de fumo, contêm poucos aditivos. Os tabacos tipo Burley e Virgínia passam por processos de cura distintos 4. O tabaco tipo Burley é seco à temperatura ambiente, e em galpões ventilados, ao longo de 4-8 semanas, ou seja, uma cura prolongada (secagem ao ar ambiente), que dá ao produto um baixo teor de açúcar e alto teor de nicotina. Por outro lado, a cura do tabaco tipo Vírgínia é feita a temperaturas mais elevadas em galpões aquecidos, e durante períodos mais curtos (5-7 dias), um processo chamado de secagem ao ar quente (flue cure), o que desativa rapidamente as enzimas de hidrólise de carboidrato das folhas, dando a esse tipo de tabaco um teor mais alto de açúcar e teor de nicotina entre médio e alto 4. De acordo com as empresas de tabaco, os aditivos são usados para repor o açúcar perdido durante a secagem do tabaco Burley ao ar ambiente e dão à mistura de fumos (blended) gosto e aroma consistentes, e uma “assinatura sensorial”. Os cigarros de fumo tipo Burley (blended) dominam o mercado nos Estados Unidos, Brasil e outros países latino-americanos e Europa (exceto Reino Unido), enquanto os cigarros do tipo Virginia são preferidos no Canadá, Reino Unido, Austrália, Irlanda, China e alguns outros países asiáticos.
Documentos e relatórios de empresas produtoras de tabaco divulgados mediante ordem judicial (The Legacy Tobacco Documents Library, LTDL; https://industrydocuments.library.ucsf.edu/tobacco/) fortaleceram as suspeitas de cientistas da área de saúde pública de que uma série de aditivos são incorporados aos cigarros para torná-los mais atraentes, palatáveis e desejáveis para os potenciais consumidores 2,3,5,6,7,8,9,10,11. Desta forma, os aditivos de tabaco facilitariam a iniciação e manutenção do tabagismo, portanto, aumentando a prevalência do tabagismo e das doenças relacionadas ao tabaco na população.
Embora a indústria negue que os aditivos tenham qualquer atividade farmacológica, e sustente que, de forma alguma, eles tornam os cigarros mais atraentes e viciantes, há uma série de evidências que contrariam tais alegações 2,3,5. De fato, preponderam as evidências que mostram que os aditivos aumentam o apelo e a palatabilidade dos produtos derivados do tabaco, particularmente entre os jovens. No intuito de tornar a entrega de nicotina mais aceitável para o fumante, torna-se necessário utilizar aditivos que atenuem o sabor amargo e áspero do alcalóide. Documentos da indústria mostraram que o ácido levulínico foi usado para aumentar o efeito da nicotina, e ao mesmo tempo reforçar a percepção de suavidade e leveza da fumaça do cigarro 12. Uma revisão recente da literatura, com análise de documentos da indústria do tabaco, sugeriu que os fabricantes de cigarro usaram pirazinas para aumentar o apelo do produto, facilitando a iniciação do tabagismo e desencorajando a cessação 13. Nessa mesma linha, foi relatado que o mentol, comumente utilizado como aditivo do tabaco, aumenta a frequência e volume respiratórios, e leva a uma inalação mais profunda da fumaça. O mentol é um agente anestésico local, e é razoável afirmar que contribui para tornar a fumaça de tabaco mais “suave” 6. Em uma revisão da literatura sobre os açúcares enquanto aditivos do tabaco, Talhout et al. 8 concluíram que há indicações consistentes de que os açúcares mascaram a aspereza da fumaça do tabaco e o impacto da mesma na garganta 8,9,10. Além disso, os autores destacaram que o gosto adocicado e o aroma agradável dos açúcares caramelizados são apreciados particularmente pelos jovens que iniciam o hábito de fumar 8. Entretanto, pesquisadores da Philip Morris International (PMI) 14 que fizeram uma revisão dos “estudos publicamente disponíveis” sobre o uso de açúcares como ingredientes do tabaco, concluíram que, embora causem algumas diferenças na composição química da fumaça (p.ex. aumento do formaldeído), a adição de açúcares “não levou a alterações relevantes de atividade relevantes em estudos in vitro e in vivo” 14 (p. 244). Os cientistas da indústria reiteram as alegações das empresas de produtos derivados do tabaco no sentido de que os açúcares são acrescentados aos cigarros americanos com misturas de fumos (blended) simplesmente para repor o açúcar perdido durante a cura do tabaco Burley, e que a adição de açúcar não aumenta de forma alguma os riscos e danos inerentes ao tabagismo 14. Para apoiar as alegações da indústria de que a adição de açúcares não altera a prevalência do tabagismo, Roemer et al. 14 citaram um único estudo, de Lee et al. 15 (um estudo transversal, ecológico), comparando a prevalência do tabagismo entre mercados em que predomina o tabaco blended americano (com açucares e aditivos) e aqueles em que é consumido principalmente o tabaco do tipo Virgínia (sem açúcares e com poucos aditivos) 15. Em função do alto risco de viés e de muitos potenciais fatores de confusão (não controlados), os estudos “epidemiológicos”, com base em comparações entre países, não são indicados para responder adequadamente a essa questão.
A indústria do tabaco também alega que os aditivos não aumentam a toxicidade inerente à fumaça de cigarro. Todavia, o impacto dos aditivos sobre a toxicidade da fumaça do tabaco ainda não é claro 11.
De acordo com a Convenção-Quadro sobre o Controle do Tabaco (CQCT) da Organização Mundial da Saúde (OMS), cada parte proporá diretrizes para a análise e mensuração dos conteúdos e emissões dos produtos de tabaco, e tomará providências efetivas para a realização dessas análises, medidas e regulamentação (CQCT, artigos 9 e 10). Quando o Brasil ratificou a CQCT-OMS, o país se comprometeu a implementar medidas de controle do tabaco 11,16. Uma das medidas de controle que reduziria a prevalência do tabagismo e, portanto, a ocorrência de doenças relacionadas ao hábito de fumar, é a proibição dos ingredientes e aditivos que tornam os produtos de tabaco mais atraentes e viciantes 11,16.
Um grupo de trabalho sobre aditivos do tabaco, formado por especialistas internacionais indicados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), fez uma revisão da literatura científica e dos relatórios da Associação Brasileira da Indústria do Fumo (ABIFUMO) e da agência reguladora, e concluiu que os dados toxicológicos disponíveis sobre os aditivos do tabaco eram insuficientes para apoiar as alegações das empresas produtoras de tabaco de que os aditivos não aumentavam os danos à saúde provocados pela fumaça do cigarro 7,17.
Esclarecer se os aditivos exacerbam ou não os danos à saúde causados pela fumaça do cigarro é um desafio para os toxicologistas. A não ser que o delineamento dos estudos toxicológicos atenda a alguns requisitos metodológicos, é pouco provável que tais estudos consigam responder adequadamente a essa questão. Primeiro, porque a fumaça do cigarro já é intrinsicamente muito tóxica e, portanto, demonstrar que os aditivos levam a um incremento significativo, embora pequeno (ou a uma redução pequena) da toxicidade da fumaça do tabaco, depende dos desfechos de toxicidade medidos em teses in vitro ou in vivo serem válidos e sensíveis, e além disso, exibirem uma clarta relação entre dose e resposta. Os pesquisadores também devem estar cientes de que o poder estatístico para detectar uma diferença depende do tamanho (n) dos grupos comparados. Para demonstrar um incremento pequeno em relação à toxicidade basal da fumaça, o erro tipo β (tipo-II) estimado para o experimento deve ser pequeno, o que exige grupos grandes de controles (sem aditivos) e expostos (com aditivos). Segundo, para avaliar a contribuição dos aditivos do tabaco à toxicidade total da fumaça, os toxicologistas precisam testar tanto os aditivos não queimados quanto os produtos da pirólise desses aditivos. O problema pode se revelar difícil na prática, porque a química da pirólise dos aditivos ainda é pouco explorada 5,6. Terceiro, uma avaliação toxicológica abrangente dos aditivos do tabaco deve incluir testes de toxicidade por via inalatória. Embora, eventualmente, uma quantidade pequena de condensado da fumaça possa ser deglutida, depois de depositada nas mucosas da cavidade oral e da árvore brônquica (de onde os movimentos ciliares do epitélio brônquico a transporta de volta à faringe), os efeitos danosos do tabagismo resultam predominantemente da inalação da fumaça. Quarto, o hábito de fumar resulta em exposição crônica aos produtos tóxicos da fumaça; portanto, os aditivos do tabaco devem ser submetidos a testes de toxicidade crônica, inclusive a ensaios de carcinogenicidade de longo prazo em roedores. Os testes de toxicidade crônica por via inalatória e os ensaios de carcinogenicidade são metodologicamente complexos, demoram muito tempo e requerem investimentos de recursos extremamente altos. Quinto, a fabricação dos cigarros envolve via de regra o emprego de misturas de muitos aditivos (alguns dos quais constituem eles próprios misturas complexas), e não o uso de apenas uns poucos aditivos. A combustão do tabaco gera um número indeterminado de produtos de pirólise dos ingredientes do revestimento e dos sabores de cobertura, o que torna a fumaça de cigarro uma mistura de ingredientes ainda mais complexa. Por conseguinte, de acordo com as estimativas atuais, a fumaça do cigarro contem mais de 4.600 compostos, entre os quais muitos carcinógenos comprovados ou suspeitos; isto é, substâncias classificadas como de risco carcinogênico “comprovado” (grau 1), “provável” (grau 2A) ou “possível” (grau 2B), segundo a classificação da Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (IARC) para riscos de câncer em humanos 5,10,18,19,20,21. Prever a contribuição individual de uma substância química à toxicidade de misturas de múltiplos componentes e avaliar os riscos à saúde humana associados à exposição às misturas complexas é um dos temas mais desafiadores para a pesquisa toxicológica no século XXI. Quanto aos aditivos do tabaco, a questão é saber se os aditivos e os respectivos produtos de pirólise presentes na mistura de constituintes da fumaça, interagem de tal forma que a toxicidade global da fumaça seja maior do que a soma dos efeitos tóxicos dos componentes individuais da mistura. Para responder a essa pergunta, é necessário testar não apenas a mistura inteira, incluindo a mistura de tabaco mais os aditivos, como também, os próprios aditivos individuais.
Finalmente, do ponto de vista da saúde pública, pode parecer contraditório e eticamente questionável, alocar recursos de pesquisa para avaliar a “segurança” dos aditivos do tabaco. Cigarros pertencem a uma classe especial de produtos de consumo que não trazem claros benefícios para o usuário ou para a comunidade, ao mesmo tempo em que representam um risco substancial para a saúde dos fumantes ativos e passivos. Além disso, a fumaça do tabaco é altamente prejudicial à saúde, quer o tabaco queimado contenha aditivos ou não. É difícil justificar o sacrifício de um grande número de animais de laboratório apenas para demonstrar que os aditivos de tabaco exacerbam, não alteram, ou atenuam levemente a toxicidade inerente à fumaça do cigarro.
Esta revisão da literatura abordou os efeitos dos aditivos na composição química e toxicidade da fumaça do tabaco. Os autores fizeram uma avaliação crítica das qualidades positivas e limitações dos estudos que foram selecionados para a revisão. Também foram examinadas as propostas para esquemas escalonados de testes para a avaliação toxicológica dos aditivos do tabaco.
Materiais e métodos
Foram feitas buscas nas bases de dados eletrônicas MEDLINE e Biblioteca Virtual em Saúde (BVS) com a cadeia de busca em inglês “tobacco additives OR tobacco ingredients”. A busca abrangeu o período que inicia com a criação da respectiva base de dados até 2 de agosto de 2015. Para identificar outros estudos potencialmente elegíveis, foram examinadas também as listas de referências dos artigos selecionados, o relatório do grupo de trabalho internacional constituído pela Anvisa, e documentos da Anvisa e ABIFUMO 17. Não houve restrição quanto ao idioma original do artigo. Houve um esforço no sentido de recuperar o texto completo de todos os estudos potencialmente relevantes. Separadamente, dois pesquisadores examinaram os títulos e resumos para inclusão ou exclusão, e revisaram de maneira independente os artigos selecionados para leitura completa e análise. Os artigos foram excluídos de acordo com os seguintes critérios de exclusão estabelecidos a priori: (1) comentários; (2) revisões ou visões gerais da literatura; (3) estudos teóricos, e (4) estudos observacionais em populações humanas. Os critérios prévios de elegibilidade dos estudos para a revisão foram: (1) estudos que investigaram os efeitos dos aditivos sobre a química e/ou toxicidade da fumaça, e (2) estudos que empregaram métodos experimentais. A
Resultados e discussão
Embora muitos dos ingredientes e aditivos do tabaco sejam usados na fabricação dos cigarros a partir dos anos 1970, a maioria dos estudos sobre a “segurança” dos aditivos foi publicada apenas nas duas últimas décadas
Os efeitos dos aditivos do tabaco sobre a química da fumaça de cigarro
Os artigos de Paschke et al. 22 e Rodgman 23,24 analisaram os dados de estudos da indústria do tabaco gerados nos anos 1950, 1960 e 1970. Os autores (pesquisadores proeminentes filiados a empresas de produtos derivados do tabaco) examinaram não apenas os dados clínicos, toxicológicos e químicos encontrados em bases de acesso público, como também aqueles encontrados nas bases de dados internas das empresas, e concluíram que os aditivos flavorizantes, os materiais do revestimento (casing) e os umectantes não aumentavam de forma significativa os teores de hidrocarbonetos aromáticos policíclicos (PAH) e de benzo[a]pireno (B[a]P) na corrente primária da fumaça dos cigarros 4,23,24. A presente revisão identificou uma série de estudos mais recentes a respeito dos efeitos dos ingredientes e aditivos sobre os níveis de um grupo mais amplo de constituintes de interesse toxicológico (os analitos de Hoffmann) na corrente primária da fumaça do cigarro.
Os “analitos de Hoffmann” consistem em 44 compostos de interesse toxicológico que são encontrados na corrente primária da fumaça. Dentre os analitos de Hoffmann, apenas o alcatrão, a nicotina e o monóxido de carbono são produzidos em quantidades da ordem de mg por cigarro, enquanto 29 compostos (formaldeído, benzeno, acetaldeído, 1,3 butadieno e outros) estão presentes em quantidades da ordem de µg/cigarro, e o restante em quantidades de ng/cigarro. Os analitos de Hoffmann são assim chamados em reconhecimento à relevante contribuição feita por Dietrich Hoffmann ao estudo da carcinogenicidade do tabaco 25. Ao longo de uma carreira altamente produtiva, Hoffmann (1924-2011) publicou uma série de estudos analíticos sobre os componentes carcinogênicos da fumaça do tabaco 25. Muitos cientistas da indústria, das agências e da academia acreditam que uma diminuição significativa dos níveis dos “analitos de Hoffmann” na fumaça do tabaco poderia resultar em cigarros menos perigosos para a saúde 4.
Como resumido na
Tabela 1 Estudos experimentais sobre os efeitos dos ingredientes e aditivos do tabaco na composição química da fumaça do cigarro.
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Efeitos dos aditivos de tabaco na toxicidade da fumaça de cigarro
A
Tabela 2 Estudos experimentais sobre efeitos de ingredientes e aditivos do tabaco na toxicidade da corrente primária da fumaça do cigarro.
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Testes in vivo de toxicidade
Nos testes de toxicidade sub-crônica por via inalatória, os ratos foram expostos, apenas pelo focinho (nose-only), à fumaça de cigarro gerada por máquinas de fumar, ajustadas para fornecer fumaça com uma concentração bastante constante de material particulado total, tanto aos animais experimentais (fumaça de cigarros com aditivos), quanto aos respectivos controles (cigarros sem aditivos). Por conseguinte, todos os testes in vitro, e o teste in vivo na pele do dorso de camundongos, compararam as fumaças dos cigarros experimentais (com aditivos) e controles (sem aditivos) ajustadas para conter quantidades iguais de condensado da fumaça (material particulado total). Portanto, os testes in vitro e in vivo de toxicidade compararam, em animais experimentais e controles, fumaças de cigarro com quantidades iguais de material particulado total. Sob essas condições experimentais, um aumento da quantidade de material particulado total por cigarro, causado pela incorporação de aditivos 26, não tem qualquer influência sobre o resultado dos testes de toxicidade. De acordo com os toxicologistas da indústria do tabaco, o ajuste da produção de material particulado total na fumaça testada seria a abordagem mais realista para a pergunta a ser respondida por esses estudos, porque os cigarros comerciais são fabricados para serem enquadrados em segmentos de mercado específicos em termos do conteúdo total de material particulado (ou de “alcatrão”).
Uma limitação, comum a todos os experimentos que investigaram os efeitos dos aditivos do tabaco sobre a toxicidade da fumaça do cigarro, é a falta de clareza sobre o poder estatístico para detectar diferenças entre a fumaça com e sem aditivos, quando existe realmente uma diferença. Roemer et al. 29 sugerem que testes de mutagenicidade com as linhagens de Salmonella typhimurium TA98 e TA100, e de ensaios de citoxicidade envolvendo a captação de Vermelho Neutro, são capazes de detectar diferenças de cerca de 20% e 30%, respectivamente. Em função das amostras pequenas e da grande variabilidade dos desfechos (endpoints) de toxicidade, é razoável supor que os estudos in vivo de toxicidade sub-crônica listados na
A duração dos testes de toxicidade sub-crônica (90 dias) por via inalatória
Os estudos de exposição sub-crônica por via inalatória em ratos não detectaram diferenças entre a fumaça de cigarros experimentais (com aditivos) e controles (sem aditivos), mas eles revelaram efeitos tóxicos não cancerígenos relacionados à exposição à fumaça, tais como, inflamação intersticial crônica nos pulmões, e hiperplasia, metaplasia escamosa e outras alterações patológicas do epitélio, que foram particularmente graves no trato respiratório superior
Enquanto animais que respiram obrigatoriamente pelo nariz, os roedores inalam a fumaça de tabaco exclusivamente através do focinho, independentemente do método de inalação utilizado no estudo (câmara de inalação ou exposição exclusiva através do focinho). A exposição contínua e intensa da cavidade nasal à fumaça do tabaco explica os efeitos irritantes e tóxicos graves no epitélio nasal e trato respiratório superior. Ao contrário dos roedores, os adultos humanos têm a capacidade de respirar tanto pela cavidade nasal quanto pela cavidade oral, e os fumantes ativos inalam a fumaça primária majoritariamente pela cavidade oral, enquanto os fumantes passivos inalam a fumaça secundária majoritariamente pela cavidade nasal. É pouco provável que os efeitos irritantes graves no epitélio nasal de ratos, depois da exposição sub-crônica por via inalatória, ocorram também em fumantes ativos. Por outro lado, os estudos de toxicidade crônica por via inalatória em roedores não evidenciaram os conhecidos riscos de câncer do pulmão associados à exposição humana à fumaça de tabaco.
Os testes in vivo de genotoxicidade (ensaio do micronúcleo na medula óssea de camundongo) também têm sido utilizados para investigar os aditivos do tabaco. Uma limitação importante, quando o teste in vivo de genotoxicidade (clastogenicidade/aneugenicidade) é usado para identificar uma possível alteração da toxicidade da fumaça do tabaco, é que esses ensaios tem baixa responsividade, ou até mesmo não respondem à fumaça do tabaco 44. Os toxicologistas da indústria justificam a inclusão de tais testes insensíveis à fumaça do cigarro, dentro de uma bateria de testes para aditivos do tabaco, com o argumento de que esta inclusão procura assegurar que essa “ausência de atividade clastogênica seja mantida com o acréscimo do ingrediente” 45 (p. 122).
Testes in vitro de toxicidade
A contribuição dos aditivos do tabaco à toxicidade total da fumaça tem sido investigada por meio de testes de mutagenicidade em bactérias (ensaio da Salmonella com fração microssomal) e de citotoxicidade (p.ex. captação do Vermelho Neutro). A diretriz para a realização de testes de toxicidade com os ingredientes do tabaco, elaborada pelo Instituto Alemão de Padronização (DIN, Deutsches Institut für Normung), recomenda a inclusão de um ensaio in vitro para dano cromossômico na bateria de testes (p.ex. teste do micronúcleo em células de mamífero) 4,46. No entanto, as comparações da toxicidade de condensados da fumaça de cigarros experimentais (com aditivos) e controles (sem aditivos) raramente incluíram esse teste de genotoxicidade em células de mamífero.
O valor preditivo dos testes in vitro de toxicidade, empregados para comparar os efeitos das fumaças produzidas por cigarros experimentais (com aditivos) e controles (sem aditivos), é limitado pela reduzida competência metabólica dos sistemas de testes em bactérias e células, e também pela dificuldade em simular as condições da exposição in vivo. Por exemplo, Roemer et al. 29 realizaram um teste de citoxicidade (captação do Vermelho Neutro) em células de mamífero (células embrionárias de camundongo BALB/c 3T3) e calcularam as concentrações efetivas 50% (EC50) na ausência de ativação metabólica extrínseca. Entretanto, as células BALB/c 3T3 têm baixa competência metabólica e não reproduzem a biotransformação dos componentes da fumaça do cigarro que ocorre nas exposições in vivo. Por outro lado, os testes com Salmonella foram geralmente realizados tanto na presença, quanto na ausência de sistemas extrínsecos de ativação metabólica (isto é, a fração pós-mitocondrial induzida por Aroclor 1254 em fígado de rato) 29,31. No teste de citoxicidade em células de mamífero, tanto o material particulado total quanto a porção hidrossolúvel da fase gás/vapor (GVP), aprisionada na solução salina com tampão fosfato (PBS), foram administrados às células (os valores de EC50 para GVP foram comparáveis aos valores obtidos para o material particulado total) 29. Entretanto, os ensaios de mutagenicidade com Salmonella testaram o material particulado total, mas não a GVP produzida por cigarros experimentais (com aditivos) e controles (sem aditivos) 29,31.
Estratégias de experimentação para avaliar a toxicidade dos aditivos do tabaco
Embora as partes interessadas tenham concordado que é necessário realizar uma avaliação toxicológica dos aditivos do tabaco, não houve consenso entre agências, a indústria e os cientistas independentes sobre a abrangência dos testes toxicológicos dos aditivos. Conforme foi comentado na Introdução, em função de limitações teóricas e práticas, a avaliação toxicológica dos aditivos do tabaco continua a ser um enorme desafio.
Com base no conhecimento científico atual, é plausível pensar que os dados de testes in vitro e in vivo de toxicidade tem capacidade limitada de prever os riscos e danos à saúde humana provenientes do tabagismo, inclusive o câncer de pulmão. Portanto, as abordagens de avaliação comparativa da toxicidade podem não ser suficientes para inferências sobre a contribuição de aditivos específicos e/ou de misturas de aditivos à toxicidade total da fumaça do tabaco. Foi essa a conclusão a que chegaram os especialistas que integraram o Comitê sobre a Carcinogenicidade das Substâncias Químicas nos Alimentos, Produtos de Consumo e Meio-Ambiente (UK-COC), os quais reafirmaram que os estudos toxicológicos atuais não são adequados para prever o impacto dos aditivos do tabaco sobre a toxicidade da fumaça do cigarro 47. De acordo com o UK-COC: “…os estudos disponíveis, que avaliaram a contribuição de ingredientes ou aditivos individuais ou misturados à toxicidade total dos produtos derivados do tabaco são inadequados para avaliar os riscos representados pelos cigarros convencionais e, portanto, não é possível avaliar a modulação desse risco que resulta da inclusão de aditivos. É pouco compreendida, também, a relação entre o efeito (o aumento de um biomarcador) e a exposição” 47. Como já foi mencionado, o grupo de trabalho de especialistas em aditivos do tabaco, constituído pela Anvisa, também concluiu que as evidências científicas disponíveis (até agosto de 2014) eram insuficientes para sustentar qualquer conclusão de que os aditivos não têm impacto nos danos à saúde causados pela fumaça do tabaco 7,17.
Pesquisadores da indústria do tabaco (PMI) propuseram uma abordagem escalonada para avaliar a “segurança” dos ingredientes e aditivos dos cigarros 45. Os níveis hierárquicos do esquema de testes da indústria são os níveis máximos de uso (a concentração em relação ao peso do preenchimento do cigarro cortado, em ppm) como se segue: nível 0 (até 0,025ppm): apenas revisão da literatura e Relações Quantitativas de Estrutura-Atividade (QSAR, Quantitative Structure-Activity Relationships); nível 1 (15ppm), nível 0 mais pirólise e/ou análise dos compostos orgânicos voláteis; nível 2 (90ppm): nível 1 mais análise química da fumaça (18 componentes da fumaça); nível 3 (300ppm), nível 2 mais uma análise química mais ampliada da fumaça (analitos de Hoffman); nível 4 (3.000ppm), nível 3 mais testes in vitro de mutagenicidade (Salmonella; citotoxicidade por meio da captação do Vermelho Neutro; ensaio do linfoma murino) e nível 5 (> 3.000ppm), nível 4 mais estudo de toxicidade de 90 dias por via inalatória (ratos) e ensaio in vivo da indução de micronúcleos em medula óssea (camundongos) 45.
A abordagem adotada pela indústria envolve a definição de pontos de corte, com base nas quantidades previstas do ingrediente acrescentadas aos produtos de tabaco (enquanto “nível de preocupação”), para acionar a realização de um número adicional de testes de toxicidade. Esse esquema de testes escalonados foi inspirado no conceito de “limiar de preocupação toxicológica” (Threshold of Toxicological Concern - TTC), uma abordagem pragmática desenvolvida para avaliar o risco representado pelos compostos com estrutura química conhecida, para os quais não há dados de toxicidade disponíveis na literatura 48,49,50,51,52. O conceito de TTC pressupõe que a exposição humana aos níveis das substâncias químicas abaixo do respectivo TTC, tem pouca probabilidade de causar efeitos adversos. De acordo com Dempsey et al. 45 (p. 126), o nível de uso de aditivos do tabaco que acionava estudos in vivo por via inalatória (30.000ppm) (nível 5) “teve como base os estudos por via inalatória patrocinados pela PMI ao longo de mais de uma década”. Isto é, 95% dos estudos por via inalatória realizados pela PMI, não mostraram efeitos adversos de ingredientes testados em concentrações de até 30.000ppm. Os pontos de corte dos níveis intermediários (15, 90, 300 e 3.000ppm) foram derivados de percentis definidos ao longo das curvas cumulativas de distribuição dos NOAELs, enquanto o ponto de corte para o nível mais baixo, ou nível 0 (0,025ppm) teve como base os TTCs previamente definidos para substâncias genotóxicas 45.
Apoiada primariamente na quantidade do ingrediente acrescentada ao produto de tabaco, a abordagem escalonada utilizada pela indústria reduz dramaticamente o número dos atuais aditivos que eventualmente exigiriam mais testes in vitro e in vivo. Além disso, mesmo no nível de preocupação mais alto (nível 5), apenas dois testes in vivo seriam exigidos para os aditivos: o teste de toxicidade de 90 dias por via inalatória “com ênfase nas alterações irritativas do trato respiratório” e o teste do micronúcleo na medula óssea de camundongos.
Uma vez que inexistem dados toxicológicos adequados, inclusive dados de toxicidade crônica por via inalatória, do potencial genotóxico e de carcinogenicidade no longo prazo, para a maioria dos ingredientes do tabaco e de seus produtos de pirólise, os esquemas de testes das empresas de tabaco permitiriam a incorporação de quantidades pequenas de um grande número de substâncias que não foram testadas na fabricação dos produtos de tabaco. A proposta da indústria tem como premissa implícita que, entre dezenas ou até centenas de ingredientes do tabaco não testados e seus respectivos produtos de pirólise, nenhuma substância interage com outra substância de maneira aditiva ou sinérgica.
O Centro Alemão de Pesquisa em Câncer (DKFZ: Deutsches Krebsforschungszentrum) propõe uma abordagem escalonada de testes menos conservadora para investigar a toxicidade dos aditivos do tabaco
O esquema de testes escalonados do DKFZ foi alvo de críticas de pesquisadores da indústria do tabaco. Ruth Dempsey e colegas argumentam que o esquema escalonado do DKFZ levaria “à proibição de quase todos os ingredientes, uma vez que a combustão de matéria orgânica sempre leva a algumas substâncias tóxicas, como o formaldeído” 45 (p. 125). De acordo com esses pesquisadores da indústria, o esquema poderia resultar na proibição de alguns ingredientes “mesmo quando produzem muito menos substâncias tóxicas do que o tabaco e, portanto, diluem as substâncias tóxicas da fumaça” 45 (p. 125). Embora, teoricamente, possa ocorrer um pequeno efeito de diluição, na prática nenhum estudo já comprovou que os aditivos individuais ou as misturas de aditivos utilizados atualmente diluem as substâncias tóxicas na fumaça do tabaco, e/ou que tornam a fumaça de cigarro menos perigosa para a saúde dos fumantes.
Uma vez que a fumaça de tabaco é uma mistura altamente complexa de substâncias tóxicas, um ajuste dessa toxicidade de fundo da fumaça do cigarro para mais (ou para menos), por meio do acréscimo de quantidades pequenas de ingredientes, pode ser difícil de detectar com os testes-padrão de toxicidade. Por exemplo, os testes de exposição sub-crônica por via inalatória em ratos não detectaram qualquer efeito dos aditivos na incidência e gravidade dos achados histopatológicos no trato respiratório
O esquema de testes proposto pelo DKFZ procura excluir a incorporação de qualquer substância previsivelmente perigosa aos produtos de tabaco, além do tabaco em si. Ao levar em conta as limitações e desafios metodológicos, além da incerteza sobre a contribuição dos aditivos individuais à toxicidade global da fumaça, o esquema mais rigoroso do DKFZ procura, na medida do possível, permanecer no lado seguro.
Comentários finais
Em conclusão, devido à insuficiência da avaliação de toxicidade, ao baixo valor preditivo, ao baixo poder estatístico e às outras limitações metodológicas dos estudos comparativos de toxicidade já realizados, ainda não é claro o impacto dos aditivos individuais e/ou das misturas de constituintes atualmente acrescentados aos produtos de tabaco sobre a toxicidade global da fumaça do cigarro. Entretanto, os riscos que o tabaco representa para a saúde humana dependem tanto da toxicidade global da fumaça quanto da exposição à fumaça de tabaco. Independentemente dos aditivos aumentarem, ou não alterarem, a toxicidade da fumaça, a maioria das evidências indica que os aditivos facilitam a iniciação ao tabagismo e sua manutenção, contribuindo, assim, para uma maior prevalência do tabagismo e das doenças relacionadas ao tabaco na população. Um possível efeito dos aditivos aumentando a prevalência do tabagismo e, portanto, a prevalência das doenças relacionadas ao tabaco, foi destacado no relatório de especialistas do UK-COC: “Além disso, é possível que os aditivos alterem o comportamento do fumante, de maneira a aumentar o uso do produto; esse aumento da exposição provavelmente resultará em um risco aumentado” 47.
Finalmente, o ônus da prova recai sobre a indústria do fumo, que têm a responsabilidade de fornecer evidências cientificamente sólidas para sustentar qualquer conclusão no sentido de que os aditivos não aumentam a toxicidade global da fumaça e que não intensificam a atratividade, a palatabilidade e a capacidade de causar dependência dos produtos fumígenos derivados do tabaco. De qualquer maneira, com base nas melhores evidências disponíveis, é possível prever que a proibição do uso de aditivos na fabricação dos cigarros resultaria em declínios progressivos da prevalência do tabagismo e da morbimortalidade relacionada ao tabaco. A pronta aplicação da resolução da Anvisa que proíbe a maioria dos aditivos de tabaco 11 - cuja eficácia foi suspensa até a decisão final do Supremo Tribunal Federal - certamente seria um grande passo no sentido de alcançar nas próximas décadas um objetivo de saúde pública da maior relevância, ou seja, a primeira geração de brasileiros totalmente livres do tabaco.
Agradecimentos
M. R. G. C. foi aluna de doutorado do programa de pós-graduação do Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva (INCA). O Laboratório de Toxicologia Ambiental da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz recebeu bolsas de produtividade científica do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj) e da Fiocruz (INOVA-ENSP e PAPES VI) outorgados a FJRP e ACAXO.
Referências
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