Cadernos de Saúde Pública
ISSN 1678-4464
38 nº.12
Rio de Janeiro, Dezembro 2022
ARTIGO
Condições de trabalho dos profissionais de saúde indígena no maior Polo Base do Brasil
Renata de Matos Vicente, Naiara Ferraz Moreira, Caroline Camila Moreira, Caio Gustavo Simonelli, Verônica Gronau Luz
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311XPT110321
Povos Indígenas; Pessoal de Saúde; Acidentes de Trabalho; Violência no Trabalho; Atenção Primária à Saúde
Introdução
A atenção primária à saúde (APS) indígena no Brasil é coordenada, desde 1999, por um subsistema que faz parte do Sistema Único de Saúde (SUS). O Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SasiSUS) estruturou a saúde indígena em 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs), divididos conforme ocupação geográfica e territorial dos povos indígenas, podendo abranger mais de um estado. Os DSEIs contêm Polos Base, estruturas organizacionais responsáveis por executar as ações de APS e que estão presentes em um ou mais municípios, além de serem a base para as Equipes Multidisciplinares de Saúde Indígena (EMSI) 1,2. De 1999 a 2010, a saúde indígena era de responsabilidade da Fundação Nacional de Saúde (FUNASA) e, a partir de 2010, o SasiSUS passou a ser gerido pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), dentro do Ministério da Saúde 3.
O Mato Grosso do Sul, com a segunda maior população indígena do Brasil, apresenta um único DSEI (DSEI-MS), que é o maior do país em quantitativo populacional, com aproximadamente 84 mil indígenas atendidos. Nesse DSEI existem 14 Polos Base responsáveis pela cobertura dos serviços de saúde em um conjunto de territórios indígenas no qual estão estruturadas EMSI. O Polo Base de Dourados se destaca como o maior do estado e também do Brasil, atendendo a quase 18 mil indígenas das etnias Guarani Ñandeva, Guarani Kaiowá e Terena 4.
O Polo Base de Dourados apresenta características próprias e, além do número muito grande de indígenas atendidos, inclui a Reserva Indígena de Dourados (RID), a terra indígena com maior densidade populacional no país 5. Dentro da RID existem duas aldeias, Bororó e Jaguapiru, onde moram mais de 16 mil indígenas que sofrem cotidianamente diversas violações de direitos humanos desde a criação da reserva, em 1917, resistindo diariamente ao alto índice de violência e a diversas outras iniquidades em saúde, consequência de anos de ausência do Estado brasileiro 4,6,7.
Os profissionais de saúde que compõem as EMSI são responsáveis pela assistência à saúde desses povos dentro e fora de terras indígenas. Fora da RID, em áreas de acampamentos e retomadas de território, a situação é ainda mais precária, aumentando a pobreza e a falta de acesso à água, à energia elétrica e a alimentos, além de intensificar conflitos de terra 6,8.
O trabalho dos profissionais da saúde indígena na APS é atravessado por todas essas dificuldades socioculturais, políticas, agrárias, históricas e geográficas que acometem a área de cobertura do Polo Base de Dourados. Essas e outras dificuldades são a realidade cotidiana dos trabalhadores do SUS para os povos indígenas, sendo comuns também outros desafios, como a alta rotatividade dos trabalhadores, ações descontinuadas, dificuldades de adequação na rotina laboral, precarização de vínculos trabalhistas e falta de formação profissional para a atuação em contexto intercultural 2,9,10,11.
Em revisão bibliográfica recente, existem poucas referências a estudos que descrevam as condições de trabalho dos profissionais de saúde indígena; a maioria dos artigos concentra-se no trabalho de profissionais da saúde indígena em contexto intercultural e no processo de trabalho e produção de cuidado nas Casas de Saúde Indígenas (CASAI) 12,13,14. Assim, o objetivo deste estudo foi investigar e comparar as condições de trabalho entre os profissionais de saúde indígena do Polo Base de Dourados, tendo como hipótese que tais condições são piores entre agentes indígenas de saúde (AIS) e agentes indígenas de saneamento (AISAN), profissionais das equipes volantes e aqueles com maior tempo de trabalho.
Métodos
Trata-se de um estudo transversal realizado com todos os 124 profissionais de saúde do Polo Base de Dourados que atuam diretamente na assistência aos povos indígenas dentro do território, na APS, não se tratando de amostragem. O estudo foi conduzido com todos os profissionais indígenas e não indígenas, dos quais 46 eram AIS, 18 AISAN, 18 técnicos de enfermagem, nove enfermeiros, oito médicos, seis odontólogos, sete auxiliares de saúde bucal, cinco nutricionistas, três psicólogos, dois assistentes sociais, um fisioterapeuta e um farmacêutico. Não foram elegíveis para o estudo os profissionais que não prestavam atendimento direto no território, como aqueles lotados apenas na sede do Polo Base e na CASAI de Dourados.
O Polo de Dourados abrange quatro municípios, e os profissionais estavam distribuídos em seis EMSI, quatro delas denominadas equipes fixas e as outras duas equipes volantes. As fixas realizavam atendimento diário nas unidades básicas de saúde indígena (UBSI) dentro da RID, sendo duas equipes fixas na aldeia Bororó e outras duas na Jaguapiru. Essas equipes atendiam uma população de aproximadamente 16 mil pessoas. As duas equipes volantes atendiam diariamente em escala de rodízio outros 17 diferentes locais, sendo quatro aldeias, e o restante acompanhava acampamentos e áreas de retomadas na região. As equipes volantes atendiam cerca de 2 mil pessoas.
Nas aldeias atendidas pelas equipes volantes existia a estrutura física da UBSI, assim como na RID. Já nos acampamentos e áreas de retomadas não havia estrutura física disponível, portanto, a prestação dos serviços de saúde acontecia de modo improvisado, embaixo de árvores ou dentro do carro, que era adaptado para consultas odontológicas e exames preventivos.
Vale ressaltar que a SESAI não considera que indígenas que moram fora de Terras Indígenas tenham direito ao acesso à saúde via SasiSUS. Entretanto, devido aos frequentes pedidos de atendimentos em saúde por meio do Termo de Ajustamento de Conduta do Ministério Público Federal, a SESAI precisou instituir como rotina de trabalho ações de saúde nesses acampamentos e áreas de retomada, não reconhecidos pelo Governo Federal.
Todos os profissionais de saúde foram entrevistados aplicando-se um questionário semiestruturado previamente testado com trabalhadores indígenas sem curso superior e posteriormente adequado à linguagem. O instrumento incluiu perguntas sociodemográficas e econômicas (como sexo, idade, profissão, escolaridade, ser ou não indígena, etnia, religião, situação conjugal, renda familiar) e questões relacionadas às condições de trabalho (como equipe de referência, tempo de serviço na saúde indígena, tipo de vínculo empregatício, plano de cargo e carreira [PCC], outra fonte de renda, meio de transporte até a aldeia, relacionamento com o usuário e colegas de trabalho, trabalho em equipe, uso de equipamentos pesados no trabalho, riscos, violências e acidentes durante o tempo de trabalho na saúde indígena, sobrecarga laboral, trabalho no fim de semana e em casa, valorização e metas no trabalho, salário e satisfação ou insatisfação salarial).
Os riscos de trabalho foram classificados em psicológicos, físicos, químicos, ergonômicos, acidentes, violências, doenças infectocontagiosas, parasitárias e outros riscos. Para as violências, foram consideradas as violências física e verbal, além da ameaça. Já os acidentes de trabalho foram definidos como aqueles que acontecem no local de trabalho ou no trajeto para o local de trabalho ou vice-versa 15.
Os questionários foram aplicados entre os meses de fevereiro e março de 2020 por pesquisadores da área da saúde treinados, nas UBSI ou na sede do Polo Base. Todas as entrevistas foram realizadas em português, uma vez que todos os trabalhadores indígenas tinham domínio sobre o idioma. Com a pandemia causada pela COVID-19, não foi possível concluir a coleta de dados presencialmente, e algumas entrevistas (12,8%) foram feitas posteriormente, entre outubro e novembro do mesmo ano, por telefone. Para essas, foi considerada perda quando houve mais de três tentativas de contato com o profissional sem resposta.
Para as análises estatísticas foram selecionadas três condições de trabalho a fim de testar a associação com as demais variáveis de interesse do estudo: trabalhar nas equipes fixas comparado a atuar nas equipes volantes; ser AIS ou AISAN (que são obrigatoriamente indígenas e moradores do território) versus outras categorias profissionais; e ter tempo de serviço na saúde indígena maior que dez anos, comparado ao tempo de serviço de até dez anos. Com relação ao tempo de serviço, o ponto de corte escolhido para a categorização se deve tanto pela alteração da gestão do SasiSUS, de Funasa para SESAI, ter ocorrido há dez anos, quanto pela proximidade com o período médio de tempo de trabalho na saúde indígena entre os profissionais.
A tabulação de dados foi realizada em dupla entrada no software EpiInfo, versão 7.2 (https://www.cdc.gov/epiinfo/index.html), e as análises estatísticas foram feitas no programa SPSS, versão 22 (https://www.ibm.com/), com utilização do teste qui-quadrado de Pearson ou teste exato de Fisher. Para todas as associações testadas, o nível de 5% de significância estatística foi adotado (p < 0,05). Para as variáveis que possuíam caselas com zero, foi adicionado um número em cada casela para viabilizar a aplicação do teste exato de Fisher.
Este estudo seguiu todos os critérios para pesquisa com povos indígenas e foi aprovada pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP; parecer nº 3.668.181). Todos os profissionais que concordaram em participar assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Resultados
Dos 124 profissionais de saúde indígena do Polo Base de Dourados, houve a participação de 117 (94,4%). Mesmo sem recusas, o posterior contato telefônico gerou a perda dos dados de sete trabalhadores (5,6%).
As características dos profissionais e das condições de trabalho na saúde indígena estão descritas na Tabela 1.
Tabela 1 Caracterização sociodemográfica e econômica dos profissionais e das condições de trabalho na saúde indígena. Polo Base de Dourados, Mato Grosso do Sul, Brasil, 2020.
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Os profissionais das EMSI apresentaram média de idade de 38,3 anos, variando entre 20 e 73 anos, e tempo médio de trabalho de 11,4 anos, com os extremos de 1 e 36 anos. A análise das características dos profissionais e das condições de trabalho na saúde indígena mostraram que a maioria dos profissionais era do sexo feminino, entre 35 e 54 anos e possuía Ensino Médio completo Tabela 1. Dos trabalhadores que eram indígenas (82,9%), houve a predominância da etnia Kaiowá (41,2%), sendo que todos os AIS, AISAN, técnicos de enfermagem e auxiliares de saúde bucal eram indígenas, assim como a grande maioria dos enfermeiros (88,9%) e metade dos odontólogos (dado não apresentado nas tabelas). Do total de trabalhadores, 68,1% eram evangélicos e a renda familiar per capita menor de um salário mínimo era presente em 62,4%.
Com relação às condições de trabalho, quase 80% dos profissionais atuavam em equipes fixas, sendo mais de 90% com contrato trabalhista em regime de Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), sem segurança com vínculo empregatício. A maioria acreditava que o trabalho trazia risco para saúde, havia presenciado e/ou sofrido violência e acidente no trabalho, trabalhava aos finais de semana e já havia recebido pagamento atrasado. Apesar disso, a maioria dos trabalhadores sentia-se valorizado no serviço.
A maioria dos profissionais entrevistados pertencia às quatro equipes fixas distribuídas numericamente de forma semelhante entre elas, atendendo a cerca de 16 mil indígenas dentro da RID. Todas as equipes fixas eram compostas por médico(a), enfermeiro(a), técnico(a) de enfermagem, odontólogo(a), auxiliar de saúde bucal, AIS, AISAN, nutricionista, psicólogo(a) e assistente social. Estes três últimos profissionais se dividiam entre equipes fixas e volantes. Já as equipes volantes atendiam aproximadamente 2 mil pessoas, em diversas regiões, muitas delas em situação de conflito territorial e condições de vida mais precárias. Os profissionais das equipes volantes eram os mesmos das fixas, com exceção dos agentes indígenas, que eram aproximadamente metade do número das equipes fixas, assim como o número de técnicos de enfermagem era menor nas volantes em comparação às fixas, devido ao montante de pessoas atendidas ser bem mais reduzido. Além dos profissionais e da composição das equipes descritas, apenas um fisioterapeuta e um farmacêutico atuavam para todo o Polo de Dourados, não pertencendo a nenhuma equipe especificamente.
Quanto ao transporte para a aldeia, 71,8% dos profissionais indígenas residiam na própria aldeia onde trabalhavam (resposta como “não se aplica”). Para o deslocamento dos demais profissionais das EMSI até a RID ou fora dela, o Polo Base de Dourados contava com apenas quatro veículos, que diariamente saíam para os locais de trabalho e voltavam para a sede do Polo. O serviço de transporte era terceirizado e há muitos anos enfrentava problemas relacionados à carência de carros, combustível e/ou motoristas.
Dentre os 41% que relataram carregar equipamentos pesados no trabalho, a maioria era AIS (e alguns AISAN) que transportavam balanças pediátricas, mochila com materiais de trabalho (como caderno e fichas) e ferramentas para manutenção de poços.
As principais sobrecargas de trabalho elencadas foram: grande demanda, cobranças, realização de múltiplas funções, muita burocracia e ampla área de cobertura. Quanto ao trabalho para casa, as frequências que mais relataram foram: uma vez por mês (normalmente em épocas de fechamento de consolidado); uma ou duas vezes por semana; e todos os dias. Apesar dessas sobrecargas, todos os trabalhadores reconheciam a importância do seu trabalho em saúde e afirmaram gostar dele.
As associações dos aspectos do trabalho entre as equipes fixas e volantes estão apresentadas na Tabela 2.
Tabela 2 Associação entre tipo de equipe (fixas ou volantes) e variáveis relacionadas às condições de trabalho entre profissionais da saúde indígena. Polo Base de Dourados, Mato Grosso do Sul, Brasil, 2020.
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Quanto às associações entre aspectos do trabalho e tipo de equipe (fixa ou volante), verifica-se que levar trabalho para casa e ter o descanso afetado pelo trabalho no fim de semana estiveram positivamente associados a integrar equipe fixa Tabela 2. A dinâmica do trabalho e horários entre os dois tipos de equipe é diferente. Enquanto as equipes fixas geralmente cumprem diariamente o horário de trabalho das 7h30min até 17h, com intervalo para almoço, as equipes volantes realizam um horário contínuo, retornando à sede do Polo Base até às 14h30min. Depois disso, é comum alguns profissionais permanecerem no Polo para finalizar tarefas do dia, fazer relatórios e preencher consolidados mensais, que servem para prestação de contas ao DSEI, consequentemente levando menos trabalho pra casa. Além disso, esses trabalhadores atendem uma população menor em locais mais distantes.
As associações entre AIS e AISAN versus outras profissões e as condições de trabalho apresentam-se na Tabela 3.
Tabela 3 Associação entre categorias profissionais (agente indígena de saúde - AIS e agente indígena de saneamento - AISAN versus outras) relacionadas às condições de trabalho entre profissionais da saúde indígena. Polo Base de Dourados, Mato Grosso do Sul, Brasil, 2020.
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Os dados da Tabela 3 revelam que os AIS e AISAN trabalhavam mais aos finais de semana quando comparado aos demais profissionais e apresentavam mais problemas com usuários do serviço de saúde, embora para ambas as categorias analisadas a frequência dos problemas tenha sido baixa.
As associações entre o tempo de serviço na saúde indígena em anos e as variáveis de condições de trabalho estão descritas na Tabela 4.
Tabela 4 Associação entre tempo de serviço (até dez anos e maior que dez anos) e variáveis relacionadas às condições de trabalho entre profissionais da saúde indígena. Polo Base de Dourados, Mato Grosso do Sul, Brasil, 2020.
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Na Tabela 4 é possível observar que a sobrecarga de trabalho, levar trabalho para casa e trabalhar no fim de semana foram mais recorrentes entre os profissionais com menor tempo de serviço comparados àqueles com mais de dez anos, que, em contrapartida, sofreram mais acidentes de trabalho. A maior frequência de acidentes de trabalho entre profissionais com maior tempo de serviço talvez esteja relacionada com o maior período de exposição.
Com relação à remuneração, apresentada na Tabela 5, os profissionais que não possuíam ensino superior recebiam salário que variava aproximadamente entre um e dois salários mínimos e meio; já quem possuía Ensino Superior ganhava uma faixa salarial de 5 a 15 salários mínimos. No geral, a maioria dos profissionais relatou insatisfação salarial, sendo essa mais prevalente entre AIS e AISAN, seguida da categoria profissional de nutricionista, psicólogo e assistente social. O maior acréscimo desejado em relação ao valor em Reais do salário recebido ocorreu entre médicos e com relação ao percentual de acréscimo entre os agentes indígenas.
Tabela 5 Salário médio recebido, satisfação ou insatisfação salarial e salário médio desejado pelos profissionais da saúde indígena. Polo Base de Dourados, Mato Grosso do Sul, Brasil, 2020.
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Discussão
Os profissionais de saúde indígena do Polo Base de Dourados apresentaram diversas condições de trabalho críticas, mostradas nesta pesquisa. Os profissionais das equipes fixas foram os que mais referiram levar trabalho para casa e que trabalhar no fim de semana atrapalhava o descanso. Os AIS e AISAN relataram maior frequência de trabalho no fim de semana e problemas com usuários do serviço de saúde. Já os profissionais da saúde com menor tempo de serviço demonstraram maior ocorrência de sobrecarga de trabalho, leva de trabalho para casa e trabalho no fim de semana.
Com relação aos dados sociodemográficos e econômicos, Moreira et al. 16 pesquisaram trabalhadores da Estratégia Saúde da Família (ESF) no Rio Grande do Sul, e os resultados são semelhantes ao deste estudo, com a maioria dos entrevistados mulheres, casadas, com média de idade de 37,1 anos, Ensino Médio completo, agentes comunitários de saúde (ACS) e todos contratados sob regime de CLT. No entanto, o tempo de serviço verificado pelos autores diverge dos resultados deste estudo, já que foi de seis meses a cinco anos, apenas.
Quanto aos tipos de equipes, as condições de trabalho nas equipes volantes são mais difíceis, já que na maioria das regiões não há estrutura física de UBSI para atender a comunidade. Confalonieri 17 descreveu o funcionamento de ações em saúde indígena realizadas por equipes volantes a partir de 1986, muito antes da criação do SasiSUS, e algumas características ainda persistem até hoje, como a falta de infraestrutura física e de recursos materiais. Nesse sentido, é necessário que o órgão contratante avalie a possibilidade de um maior quantitativo de profissionais para as equipes e para a estruturação do serviço no geral, já que dentre as sobrecargas de trabalho elencadas pelos trabalhadores destacaram-se a falta de profissionais e a grande demanda ou área de cobertura. É importante frisar a necessidade de aumento de recursos, pois o DSEI-MS é o maior em número de população indígena do Brasil e recebe o menor orçamento do país, somando um déficit anual de R$ 27 milhões 18.
Vale ressaltar que, no caso das equipes volantes, para que um maior número de trabalhadores possa atuar, também é preciso aumentar a quantidade de carros para melhorar a logística de transporte. Segundo o Conselho Indigenista Missionário, há um sucateamento da frota existente e uma carência de veículos suficientes 18.
Trabalhar aos finais de semana também é mais comum entre profissionais das equipes fixas quando comparadas às volantes. Isso acontece porque, primeiramente, o vínculo construído com a comunidade é maior com a equipe que está cotidianamente atendendo as mesmas famílias, diferentemente das equipes volantes, que atendem diferentes locais, realizando um rodízio semanal dos atendimentos. Em segundo lugar, o local de moradia de vários trabalhadores das equipes fixas é a RID, dentro da própria comunidade, o que facilita o acesso físico e por telefone aos profissionais de saúde, sobretudo AIS, AISAN e técnicos de enfermagem. Já nas volantes, geralmente só os AIS e AISAN residem nas áreas, e os demais profissionais são de fora da comunidade, dificultando o acesso à equipe nos finais de semana.
Em metassíntese com ACS na ESF, as maiores dificuldades no relacionamento com a comunidade foram a necessidade de residir no local de trabalho, o convívio com os problemas e o risco de violência. O fato dos trabalhadores morarem onde trabalham faz com que sejam procurados além do horário de trabalho e em locais públicos de convivência, suscitando sobrecarga. Além disso, em regiões periféricas ressaltam os problemas sociais e a alta carga mental, que, além da própria comunidade, pode ser a realidade dos próprios ACS 19.
A sobrecarga de trabalho, levar trabalho para casa e trabalhar no fim de semana foram situações que ocorreram mais entre os profissionais com menor tempo de trabalho na saúde indígena. Esses dados podem sugerir que o maior tempo de experiência profissional gera aprimoramento no processo de trabalho, de modo que o profissional consegue realizar todas as atividades sem se sobrecarregar e somente no horário de serviço. Porém, podem indicar também que os profissionais que trabalham há menos tempo precisam se consolidar no cargo, demonstrando serviço para garantir o emprego, além da possível falta de habilidade com as burocracias do trabalho.
A necessidade de levar trabalho para casa e trabalhar no final de semana são características que também podem ser vistas como sobrecargas, ainda mais se elas atrapalham o descanso pessoal. Carvalho & Moraes 20 discutem que a sobrecarga de trabalho e o trabalho fora do horário reflete na ideia de excelência, comum no capitalismo atual. Em um ambiente onde há sobrecarga de cobranças e inúmeras demandas, somado a um espaço de tempo limitado, o trabalhador pode estar sujeito a um maior risco de adoecimento devido ao estresse 21.
Ao encontro desses achados, outros autores também relataram sobrecargas laborais entre profissionais da enfermagem e ACS relacionadas à precariedade, burocratização e ausência de dimensionamento no serviço, carência de recursos materiais e equipamentos, verticalização do trabalho, grande área de cobertura e necessidade de mais profissionais. Foi evidenciado ainda falta de articulação entre a equipe de trabalho, formação profissional insuficiente, pontos negativos sobre a relação com a comunidade atendida e baixo salário 19,22,23.
Segundo Brotto & Dalbello-Araujo 24, alguns fatores inerentes ao trabalho em saúde que podem ocasionar desgaste no profissional são: as violências por parte dos usuários; a sobrecarga de trabalho associada a mais de um vínculo empregatício; as urgências no trabalho em saúde; o processo de adoecimento dos trabalhadores; e a percepção de que diversos problemas relatados pelos usuários estão associados a questões mais amplas, que não encontram resolutividade ao setor saúde, mas expõem os trabalhadores a situações que remetem suas fragilidades e impotências, visto que existem apenas respostas paliativas e não definitivas para os problemas.
O longo tempo de serviço na saúde indígena, apesar da grande maioria dos profissionais ter vínculo por contrato, é um aspecto característico local, já que em outros lugares do país há alta rotatividade profissional 12,25,26. A contratação para atuação na saúde indígena na APS geralmente é gerida por Organizações Sociais (OS). No DSEI-MS e em mais oito DSEIs, a OS responsável pela gestão é a Missão Evangélica Caiuá, que em 2001 estabeleceu convênio com a FUNASA para o atendimento dos povos indígenas no Mato Grosso do Sul, mantendo-se como vencedora da licitação até os dias atuais 27,28. Os trabalhadores do Polo Base de Dourados vêm lutando para a manutenção da mesma OS ao longo dos anos com medo da mudança da empresa contratada resultar em demissões e, consequentemente, na ruptura de anos de trabalho de construção de vínculos entre profissionais e usuários. No Polo Base de Dourados, a grande maioria dos profissionais é indígena e moradora das aldeias ou áreas de retomada, o que pode contribuir para uma menor rotatividade devido à maior aceitação pela comunidade, independentemente do regime de contrato.
A Missão Caiuá estabelece os contratos segundo a CLT e renova os vínculos com os profissionais por determinado período, geralmente de um ano, o que gera instabilidade para os trabalhadores. Essa situação acomete todos os DSEIs do país desde antes da SESAI 25. Além disso, não há PCC, então independentemente do tempo de serviço ou da formação e capacitação profissional não há alteração salarial. Certamente, esse é um dos principais motivos da grande insatisfação salarial relatada por alguns profissionais da saúde indígena durante as entrevistas. A maioria dos agentes indígenas, mesmo com diversas sobrecargas de trabalho e baixa remuneração, reforçaram que permanecem nessa função por saberem da sua importância para a melhoria da saúde de seu povo e por fazerem a diferença na vida da comunidade. Ressaltamos que os agentes indígenas são profissionais imprescindíveis na EMSI por serem falantes da língua nativa, pertencerem à comunidade, formando um elo entre ela e a equipe. Todavia, seu trabalho é atravessado por complexos desafios, que envolvem, em algumas localidades, a alta rotatividade, a ambiguidade de função, muitas vezes não totalmente definida nem compreendida, bem como a necessidade de formação e de cursos de capacitação contínua, que fazem parte das demandas desses agentes 12,26,29.
A saúde indígena já foi e ainda é impactada por questões políticas voltadas à sua municipalização. É importante lembrar que o SasiSUS surgiu após décadas de organização e lutas de movimentos indígenas para o direito à atenção à saúde diferenciada, e que a municipalização significaria a perda dos direitos já conquistados.
O concurso público dentro da saúde indígena é algo discutido e muito contraditório, considerando que podem existir profissionais aprovados que não tenham o perfil, não se identificam com os povos e apenas buscam estabilidade trabalhista, podendo aumentar ainda mais a rotatividade de trabalhadores e, consequentemente, a baixa qualidade dos atendimentos 10.
No caso do fazer saúde para os povos indígenas, sobretudo para os Kaiowá e Guarani, é necessária a construção de vínculo do profissional com a comunidade, e isso leva tempo e identificação com o trabalho e com as culturas étnicas. Para o profissional que se identifica, deveria existir alguma forma de criar estabilidade e progredir no cargo e na carreira, a partir de determinado tempo de serviço, por exemplo, beneficiando tanto o trabalhador quanto a comunidade atendida.
A grande maioria dos profissionais informou possuir bom relacionamento com os usuários do serviço e colegas de trabalho. Esse aspecto pode ser um facilitador no trabalho em saúde e favorecer a atuação em equipe. A hierarquização do trabalho entre os profissionais dentro da EMSI é mais sutil quando comparada à atenção hospitalar, e geralmente os profissionais valorizam o trabalho do outro, além de existir mais união para ações conjuntas, comumente realizadas pelas equipes, conforme mencionado nas entrevistas. Ainda que a relação dos AIS com os outros membros da equipe de saúde enfrente barreiras, como descrito por Diehl et al. 12, a grande quantidade de profissionais indígenas de nível técnico e superior presente no Polo Base de Dourados pode facilitar a relação dialógica e reduzir a hierarquia existente no cotidiano do trabalho de AIS, técnicos de enfermagem e enfermeiros.
Em uma pesquisa realizada com enfermeiros da APS no Rio Grande do Sul, os aspectos sobre o vínculo com a comunidade e o trabalho em equipe foram elencados como facilitadores do trabalho 22. O vínculo trabalhador-usuário geralmente é baseado nos quesitos de receptividade, afetividade, aceitação e confiança, de modo que a conexão saudável com a unidade de saúde decorre de uma boa relação com o profissional e da qualidade do atendimento prestado. O estabelecimento de vínculo auxilia o processo de cuidado, pois possibilita que os trabalhadores conheçam os usuários e as suas necessidades 22,30.
No estudo conduzido por Beck et al. 22, os enfermeiros reconheceram que o trabalho em conjunto com os ACS é muito útil para a realização de atividades com a comunidade, por atuar como um elo entre os usuários e a equipe. Os ACS reúnem os dados sobre a saúde da comunidade e dividem com os demais profissionais, fortalecendo o trabalho em equipe 22,31. O trabalho na saúde indígena não é diferente, existindo uma necessidade ainda maior desses vínculos considerando as peculiaridades etnoculturais.
Os dados sobre violência desta pesquisa dialogam com outros documentos, visto que o Mato Grosso do Sul se destaca em relação à violência contra povos indígenas, sendo o local com maior notificação de agressões entre 2006 e 2017, com cerca de 3.300 casos notificados 32. Em 2019, foi o estado com maior número de homicídios indígenas registrados (n = 40), e os povos Guarani e Kaiowá apresentaram em 2011 uma taxa de homicídios de 100 por 100 mil pessoas, mais elevada que a do Iraque e quatro vezes maior que a taxa do Brasil 18,33. Em 2014, a taxa de mortalidade por causas externas (homicídios, suicídios e acidentes) correspondeu a 237,6 por 100 mil habitantes no Polo Base de Dourados, e no Mato Grosso do Sul, essa taxa foi de 84,8 por 100 mil habitantes no mesmo ano. A falta de terras é a condição que potencializa a violência nas reservas e, além disso, a proximidade da RID com a cidade facilita o acesso ao álcool e a outras drogas, o que também contribui para os índices alarmantes de violência 34. A exposição diária a esse cenário marca o trabalho das equipes fixas e pode afetar a relação entre profissionais de saúde e usuários, além de ser a realidade diária da maioria dos profissionais indígenas da equipe.
Em relação ao salário, o dado sobre insatisfação salarial relatado pela maioria dos profissionais corrobora os dados de outros estudos realizados em diversas regiões do país com profissionais de saúde que estavam insatisfeitos com a remuneração 27,35,36,37,38, assim como profissionais da saúde indígena estudados que relataram não ter aumento salarial há muito tempo.
Houve grande diferença entre os salários dos AIS e AISAN em relação aos demais profissionais. Geralmente, a remuneração é baseada no nível de escolaridade, e esse fator certamente contribuiu para a insatisfação com o salário recebido, uma vez que ignora o tempo de serviço e a experiência adquirida ao longo dos anos, visto que o tempo médio de trabalho nas EMSI foi de 11,4 anos. É importante ressaltar que o trabalho com povos indígenas conta com particularidades relacionadas à língua e à cultura, aspectos que também deveriam ser considerados para a definição salarial dos agentes, que são trabalhadores indispensáveis nesse contexto, além de membros da EMSI que estão permanentemente nas aldeias 27.
Segundo Diehl et al. 12, a diferença entre os salários dos trabalhadores é um fator que favorece a falta de motivação para continuação no emprego e a busca por formação técnica. Entretanto, a realidade local é diferente, pois muitos já realizaram cursos técnicos e superiores e conseguiram um cargo com melhor remuneração. Existem AIS que possuem formação técnica, mas não mudaram de cargo devido à falta de novas vagas e não tiveram o salário aumentado devido à falta de um PCC que valorize o tempo e a experiência de serviço.
Esta pesquisa não mostrou algumas associações estatisticamente significativas nas três categorias de desfecho analisadas, o que mostra que, independentemente do tipo de equipe de trabalho, categoria profissional ou tempo de serviço, todos os profissionais sofrem e vivem os mesmos problemas no trabalho.
Este estudo apresenta como limitação a utilização de um questionário semiestruturado extenso, que pode ter tido diferentes compreensões, sobretudo pelos trabalhadores indígenas que possuem como primeira língua o guarani e outra forma de fazer e pensar as condições do trabalho em saúde. Embora o uso do questionário apresente a identificação de variáveis relevantes para situar as condições de trabalho na saúde indígena, são necessários estudos qualitativos que permitam compreender e descrever as especificidades locais que compõem tais variáveis no trabalho cotidiano.
Ainda assim, os dados apresentados evidenciam que é essencial o desenvolvimento de melhores condições de trabalho na saúde indígena, especialmente para AIS, AISAN e profissionais com maior tempo de serviço, visto que podem estar mais desgastados e desmotivados por vivenciarem os problemas da comunidade e as condições precárias de trabalho durante vários anos. Destaca-se também a necessidade de um quantitativo maior de profissionais no Polo Base de Dourados e de mais investimento para diminuir a sobrecarga e valorizar esses profissionais.
Agradecimentos
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pela concessão da bolsa de mestrado à R. M. Vicente; ao Distrito Sanitário Especial Indígena Mato Grosso do Sul (DSEI-MS) por permitirem a realização da pesquisa; ao Polo Base de Dourados e aos seus profissionais de saúde pelo auxílio com a logística da coleta de dados, por apoiarem e participarem da pesquisa.
Referências
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