Cadernos de Saúde Pública
ISSN 1678-4464
38 nº.4
Rio de Janeiro, Abril 2022
ARTIGO
Iniquidades étnico-raciais na mortalidade infantil: implicações de mudanças do registro de cor/raça nos sistemas nacionais de informação em saúde no Brasil
Aline Diniz Rodrigues Caldas, Ricardo Ventura Santos, Andrey Moreira Cardoso
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311X00101721
Sistemas de Informação em Saúde; Mortalidade Infantil; Origem Étnica e Saúde; Desigualdades em Saúde; Estatísticas Vitais
Introdução
A inclusão da variável cor/raça nos sistemas nacionais de informações em saúde (SIS) na década de 1990 representou importante iniciativa para fins de análise das iniquidades étnico-raciais na área da saúde no país. Desde sua inclusão nos SIS, a variável cor/raça inclui as categorias branca, preta, amarela, parda e indígena 1,2,3,4. De maneira geral, as análises indicam condições de saúde desfavoráveis para indivíduos classificados nas categorias preta, parda e indígena quando comparadas à categoria branca 5,6,7,8, espelhando um cenário de desigualdades produzido pela exclusão social.
Em âmbito nacional, o Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (SINASC) e o Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), ambos gerenciados pelo Ministério da Saúde, constituem SIS que consolidam dados sobre nascimentos e óbitos, respectivamente, e são fontes imprescindíveis na produção de estatísticas vitais no país 9,10,11. A Declaração de Nascido Vivo (DNV), instrumento de coleta de dados do SINASC, teve sua última modificação em 2011, passando a coletar a cor/raça da mãe do recém-nascido e não mais a da criança. Nessa ocasião, a variável cor/raça no SINASC foi excluída do bloco Identificação do Recém-Nascido e passou a compor o bloco sobre a Mãe. No ano seguinte, houve a recomendação de que a variável cor/raça do recém-nascido voltasse a ser coletada, de modo que, em princípio, as duas variáveis constassem na DNV 12.
Devido a essas modificações na DNV, observou-se uma abrupta substituição de dados acerca da cor/raça da criança pela cor/raça da mãe no SINASC, em 2011, com um progressivo aumento na proporção de registros baseados na cor da mãe nos anos subsequentes. Por outro lado, os critérios de definição de cor/raça dos óbitos infantis no SIM (numerador) não sofreram alterações. Estudo anterior chamou atenção para prováveis implicações sobre a análise das iniquidades étnico-raciais a partir dos indicadores de saúde influenciados pela queda do registro da variável cor/raça da criança no SINASC em 2011 13.
Considerando esse cenário, o presente trabalho teve por objetivo descrever as variações anuais nas frequências de nascidos vivos e óbitos infantis por cor/raça entre 2009 e 2017, período que engloba a mudança no quesito cor/raça no SINASC. Especificamente, são abordadas as repercussões dessa mudança na magnitude das taxas de mortalidade infantil (TMI) por cor/raça e nos padrões de iniquidades étnico-raciais na mortalidade infantil no país.
Métodos
Foram obtidas as frequências anuais de nascidos vivos e óbitos infantis segundo cor/raça, de 2009 a 2017, por meio das ferramentas de tabulação de dados em saúde TabNet 14,15 e TabWin 16 do Departamento de Informática do SUS (DATASUS). Por meio da ferramenta TabWin, foram examinados os microdados do SINASC. Através do TabWin, é possível acessar todas as variáveis existentes no SINASC, incluindo a cor/raça da mãe e a cor/raça do recém-nascido, o que não é possível utilizando-se a primeira ferramenta (TabNet), que disponibiliza apenas uma variável denominada cor/raça, sem especificar se ela se refere à raça/cor da criança ou da mãe. Todos os dados utilizados são públicos e disponibilizados na Internet pelo DATASUS. Para fins das análises, conforme descritas a seguir, não se realizou o linkage entre os bancos de dados do SIM e SINASC.
Foram considerados todos os registros de óbitos e de nascidos vivos, de períodos anteriores e posteriores à mudança na coleta da variável cor ou raça no SINASC, considerando as definições de nascidos vivos e óbitos infantis conforme a Portaria nº 72, de 11 de janeiro de 2020, do Ministério da Saúde 17, que define o nascimento vivo como a expulsão ou extração completa do corpo da mãe, independentemente da duração da gravidez, de um produto de concepção que, depois da separação, respire ou apresente qualquer outro sinal de vida, tal como batimentos do coração, pulsações do cordão umbilical ou movimentos efetivos dos músculos de contração voluntária, estando ou não cortado o cordão umbilical e estando ou não desprendida a placenta. Cada produto de um nascimento que reúna essas condições se considera como uma criança nascida viva; e como óbito infantil, aquele ocorrido em crianças nascidas vivas desde o momento do nascimento até um ano de idade incompleto, ou seja, 364 dias.
Com vistas a investigar a ocorrência de variações abruptas nas frequências de nascimentos e óbitos por cor/raça e suas possíveis repercussões sobre a TMI segundo cor/raça, foram inicialmente estimadas as proporções anuais de nascidos vivos e óbitos por cor/raça, bem como as respectivas variações relativas entre 2009 e 2017. A fim de verificar se a classificação de cor/raça da mãe em substituição à cor/raça da criança no SINASC a partir de 2011 ocorreu de forma diferenciada entre as regiões geográficas do país e entre níveis de instrução da mãe, foram obtidas as frequências de nascidos vivos por cor/raça segundo grandes regiões (Norte, Nordeste, Sudeste, Sul e Centro-oeste) e instrução da mãe (nenhuma, 1-3 anos, 4-7 anos, 8-11 anos, 12 anos e mais e ignorada, seguindo a terminologia disponível no TabNet), em dois triênios, 2008-2010 (antes da mudança) e 2012-2014 (após a mudança), calculando-se as variações percentuais na classificação de cada categoria de cor/raça entre o primeiro e o segundo triênios.
Em seguida, estimou-se a TMI (óbitos/1.000 nascidos vivos) por cor/raça no mesmo período por meio de três diferentes estratégias: (1) cálculo direto, com óbitos e nascidos vivos oriundos, respectivamente, do SIM e SINASC; (2) cálculo utilizando-se como numerador as frequências anuais de óbitos por cor/raça registradas no SIM (ou seja, dados reportados) e como denominador as frequências anuais de nascidos vivos registradas no SINASC, mas distribuídas por cor/raça com base nas proporções verificadas em 2009 (ou seja, mantendo as mesmas proporções verificadas por cor/raça em ano anterior à mudança do quesito de cor/raça na DNV); e (3) cálculo utilizando-se como numerador as frequências anuais de óbitos registradas no SIM, mas distribuídas por cor/raça com base nas proporções verificadas em 2009 (ou seja, mantendo as mesmas proporções de óbitos verificadas por cor/raça em ano anterior à mudança do quesito de cor/raça na DNV) e como denominador as frequências anuais de nascidos vivos por cor/raça registradas no SINASC (ou seja, dados reportados). Para o cálculo da TMI pelas três estratégias mencionadas, utilizaram-se as frequências anuais reportadas de óbitos e nascidos vivos registradas, respectivamente no SIM e no SINASC (cálculo direto), alterando-se a distribuição proporcional dos óbitos ou nascidos vivos segundo raça/cor conforme descrito nas estratégias 2 e 3. Essas estratégias buscaram averiguar separadamente as influências do numerador e do denominador da TMI na magnitude das TMI ao longo dos anos de análise e verificar, portanto, os efeitos da mudança na variável cor/raça na DNV sobre as TMI segundo cor/raça e sobre as iniquidades étnico-raciais na mortalidade infantil no país.
Por fim, foram calculadas, para o período de 2009 a 2017, as razões entre as TMI de crianças classificadas nas categorias preta, parda, amarela e indígena e branca, esta última considerada como referência.
Resultados
A frequência de nascidos vivos variou de 2.881.581, em 2009, a 2.923.535, em 2017, o que corresponde a um incremento de 1,5%
Tabela 1 Frequências absolutas e variações percentuais de nascidos vivos segundo cor/raça. Brasil, 2009 a 2017.
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A frequência de óbitos infantis variou de 42.642, em 2009, a 36.223 em 2017, o que corresponde a uma redução de 15,1%
Verifica-se uma estabilidade na distribuição proporcional dos óbitos infantis por cor/raça entre 2009 e 2017
Tabela 2 Frequências absolutas e variações percentuais de óbitos segundo cor/raça. Brasil, 2009 a 2017.
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Tabela 3 Distribuição proporcional dos nascidos vivos e óbitos infantis segundo cor/raça. Brasil, 2009 a 2017.
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As variações percentuais de nascidos vivos segundo cor/raça, por triênios (2008-2010 e 2012-2014), foram negativas para as categorias branca (-17,1%) e ignorada (-17,2%), e positivas para as categorias preta (234,3%), amarela (103,7%), parda (11,7%) e indígena (39,1%). Em todas as regiões do país, verificou-se redução da frequência de nascidos vivos brancos e incremento da frequência de nascidos vivos pretos e indígenas, ao passo que pardos e amarelos sofreram incremento em praticamente todas as regiões, com exceção, respectivamente, do Nordeste e Norte. Foi observada redução de nascidos vivos brancos e incremento de nascidos vivos pretos em todas as faixas de instrução da mãe, enquanto, para amarelos, pardos e indígenas, o aumento ocorreu a partir das faixas de instrução intermediárias até as mais elevadas
Tabela 4 Frequência de nascidos vivos de 2008-2010 e variação relativa para o período 2012-2014 segundo instrução da mãe e regiões geográficas. Brasil, 2008 a 2014.
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A TMI no Brasil pelo cálculo direto (estratégia 1) apresentou redução de 16,3% (de 14,8 para 12,4/1.000) no período de análise
Figura 1 Taxas de mortalidade infantil segundo cor/raça, por cálculo direto (estratégia 1), com denominadores proporcionais ao ano de 2009 (estratégia 2) e com numeradores proporcionais ao ano de 2009 (estratégia 3). Brasil, 2009 a 2017.
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A adoção da estratégia 2 - que fixou a distribuição proporcional de nascidos vivos por cor/raça equivalente à distribuição observada em 2009, atenuando assim o efeito da mudança da variável cor/raça no SINASC - gerou valores de TMI relativamente estáveis em todas as categorias de cor/raça, exceto pelo incremento da TMI de indígenas a partir de 2012
A TMI calculada fixando a distribuição proporcional de óbitos por cor/raça equivalente à distribuição observada em 2009 (estratégia 3 -
Tomando como referência a estratégia 1 (cálculo direto da TMI), as razões de TMI entre categorias de cor/raça, tendo as crianças brancas como referência, revelam que as taxas de crianças amarelas e pardas foram significativamente menores a partir de 2010, com redução progressiva no período
Tabela 5 Razões entre as taxas de mortalidade infantil (TMI) por cor/raça. Brasil, 2009 a 2017.
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Discussão
Os resultados do presente estudo evidenciam que as alterações no procedimento de classificação de cor/raça no SINASC - ou seja, o uso da cor/raça da mãe em substituição à cor/raça da criança - impactaram de forma expressiva as frequências de nascidos vivos por cor/raça e, consequentemente, as magnitudes das TMI por cor/raça obtidas diretamente dos SIS. Nesse sentido, a atribuição da cor/raça da mãe (variável disponível no SINASC a partir de 2011) ao recém-nascido resultou em incremento substancial na frequência de nascidos vivos classificados como pertencentes às categorias de cor/raça preta, parda, amarela e indígena. Ou seja, ao se implementar a cor/raça da mãe como critério de classificação do recém-nascido, ocorreu uma modificação na distribuição proporcional de nascimentos por cor/raça devida à alteração conceitual no procedimento classificatório. Uma vez que a definição de cor/raça dos óbitos (numerador) permaneceu inalterada, ocorreram variações expressivas nas TMI segundo cor/raça, com abrupta e inesperada alteração nos padrões de iniquidades, o que pode ser atribuído às mudanças no critério de classificação de cor/raça do nascidos vivos. Em decorrência, revelaram-se alterações nos padrões de iniquidades na mortalidade infantil por cor/raça, padrões não somente pouco consistentes, como também bastante distintos daquele que predominava até 2011. Surpreendentemente, a TMI de brancos, por exemplo, passou a ser mais elevada que as de crianças pretas e indígenas.
No Brasil, desde a década de 1990, iniciativas governamentais têm promovido a inclusão de variáveis relacionadas ao pertencimento étnico-racial nos SIS 4, o que em parte se associa a demandas da sociedade civil. Após mais de duas décadas, estudos sobre as iniquidades étnico-raciais em saúde continuam relativamente escassos, ainda que tenham se expandido em anos recentes 18. A respeito disso, tem sido crescente o interesse em pesquisas acerca da variável cor/raça nos SIS, o que se alinha aos debates relacionados a melhorias dos serviços de saúde visando à redução das iniquidades étnico-raciais em saúde 19. Do ponto de vista metodológico, uma questão central nas investigações sobre iniquidades étnico-raciais em saúde se refere às formas de classificação da variável cor/raça, sendo a autoclassificação, em geral, a mais recomendada 20. No entanto, a depender das características específicas do evento de interesse a ser registrado nos SIS e da faixa etária do indivíduo acometido pelo evento, como é o caso dos óbitos e dos nascimentos, torna-se inviável cumprir tal recomendação, sendo empregadas outras formas de classificação 21. Inquestionavelmente, a disponibilidade de uma variável sobre a cor/raça da mãe do recém-nascido no SINASC é de vital importância para fins de análise e monitoramento de uma série de questões, como aquelas relacionadas aos determinantes sociais da mortalidade infantil, incluindo o acesso à assistência ao pré-natal, ao parto e aos cuidados com o bebê, dentre outras. A iniciativa de inclusão da variável cor/raça da mãe no SINASC em 2011, ao que parece, seguiu essa lógica, o que ocorreu concomitantemente à supressão da variável de cor/raça do recém-nascido. No mesmo ano de 2011, talvez devido ao reconhecimento dos impactos da supressão da variável de cor/raça do recém-nascido na consistência da série histórica de dados, houve uma nova recomendação de alteração metodológica, de que a variável cor/raça do recém-nascido voltasse a ser coletada, de modo que, em princípio, passar-se-ia a se dispor das duas variáveis na DNV 12. Entretanto, observa-se que o modelo de DNV vigente permaneceu apenas com a variável cor/raça da mãe. O fato é que, na prática, ao se acessar a tabulação direta de dados de nascimentos no sítio do DATASUS por meio da ferramenta TabNet, constata-se a existência de uma única variável relativa à cor/raça, sem indicação de que se refere ao recém-nascido ou à sua mãe. O passo adicional de comparação entre as variáveis cor/raça disponibilizadas no TabNet e cor/raça da mãe existente no TabWin revela uma elevada concordância, o que sugere que a variável disponível para análises étnico-raciais a partir de 2011 no SINASC corresponde à cor/raça da mãe. Desse conjunto de informações se deriva que não se efetivou a reinclusão da variável cor/raça do recém-nascido no SINASC, apesar da recomendação feita em 2011.
O cálculo da TMI, um importante indicador das condições de vida, a partir dos SIS, emprega como numerador os óbitos de menores de um ano de idade registrados no SIM e, como denominador, os nascidos vivos registrados no SINASC. Apesar das reconhecidas limitações - tais como a subnotificação de eventos vitais, o fato de a razão de óbitos/nascimentos por cor/raça não necessariamente considerar no numerador apenas indivíduos incluídos no denominador e a indisponibilidade de fatores de correção específicos por cor/raça 22 -, estudos que utilizaram o SIM e o SINASC para explorar a TMI de acordo com a cor/raça demonstraram iniquidades em saúde com expressiva desvantagem e consequente violação de direitos, para pardos, pretos e indígenas 5,6,8. Desde 2004, o Ministério da Saúde divulga anualmente relatórios (Saúde Brasil) sobre a situação de saúde da população brasileira 23,24,25,26,27,28. De 2012 em diante, os capítulos referentes às condições dos nascimentos com base no SINASC passaram a descrever as condições do parto segundo as características da cor/raça da mãe, quando anteriormente o foco das análises segundo recorte étnico-racial era o recém-nascido. Chama a atenção que, até o presente, são apresentados apenas indicadores de proporção de óbitos; ou seja, não há divulgação por parte de agências governamentais de taxas de mortalidade infantil por cor/raça no país, em que pesem as reconhecidas limitações para esse cálculo.
As análises deste trabalho apontam que, ao se tomar a cor/raça da mãe como classificação de cor/raça da criança, emergem padrões de iniquidades expressos na mortalidade infantil pouco consistentes diante dos padrões de desigualdades étnico-raciais que têm sido sistematicamente registrados no país. Portanto, ao se passar a utilizar a cor/raça da mãe como variável a ser analisada no SINASC, incorporam-se outras dimensões de complexidade, com implicações na interpretação do significado do indicador que expressa iniquidade étnico-racial na mortalidade infantil. O conjunto de alterações metodológicas ocorridas no início da década passada, que tiveram consequências no tocante à manutenção de critérios homogêneos na classificação de cor/raça no evento do nascimento, impactaram diretamente as características da série histórica de dados do SINASC relevantes para o cálculo da mortalidade infantil.
Que estratégias poderiam ser implementadas para remediar essas várias questões que, desde o início da década de 2010, trouxeram complicações adicionais para as análises da mortalidade infantil segundo cor/raça no país? Nesse sentido, um passo fundamental seria o efetivo registro das duas variáveis, quais sejam, a cor/raça da criança e da mãe, na DNV e, também, a disponibilização dessas variáveis de forma explícita e diferenciada em ambos os mecanismos de acesso aos dados do SINASC (TabNet e TabWin). Se o procedimento de classificação da cor/raça da mãe é bem estabelecido do ponto de vista metodológico (autoclassificação), caberia um aprofundamento das discussões acerca dos procedimentos de classificação da cor/raça do recém-nascido, com a subsequente pactuação e divulgação de normas técnicas específicas a serem utilizadas pelos profissionais de saúde. É sabido que, de maneira geral, questões relacionadas à classificação de cor/raça, em qualquer faixa etária, envolvem grande complexidade, uma vez que se relacionam a uma multiplicidade de fatores socioculturais, econômicos e demográficos, dentre os quais figuram a concordância ou não da cor/raça do pai e da mãe 29,30,31. No caso de crianças recém-nascidas, inclusive pela impossibilidade da autoclassificação, o tema se reveste de uma ainda maior dificuldade conceitual e metodológica, como têm apontado pesquisas qualitativas 32,33. Espera-se que as análises apresentadas neste estudo contribuam para as discussões sobre potenciais fontes de dados para estimar mortalidade infantil por cor/raça e as tendências das iniquidades étnico-raciais na mortalidade infantil, estimulando o retorno da variável cor do recém-nascido à ficha do SINASC e a geração de fatores de correção para subnotificação de nascimentos e óbitos infantis específicos por categoria de cor/raça. A melhoria na cobertura dos eventos e na completude das variáveis dos SIS pode viabilizar análises mais consistentes acerca das iniquidades na mortalidade infantil por cor/raça no Brasil, sobretudo se utilizadas estratégias de relacionamento de diferentes bases de dados, como SIM e SINASC, e o estabelecimento de recomendações sobre o uso da variável cor/raça e sua interpretação no debate sobre iniquidades étnico-raciais em saúde. A inclusão da variável cor/raça da mãe no SIM, no caso de óbitos infantis, poderia ser uma alternativa de mais curto prazo para produzir dados que permitam estimar de maneira mais consistente a TMI por cor/raça da mãe, de modo que não se necessite da realização dos procedimentos mais complexos de linkage de bases de dados. Adicionalmente, a qualificação e disponibilização de dados do Sistema de Atenção à Saúde Indígena e sua integração e compatibilização com os demais SIS do Ministério da Saúde, bem como a troca de experiências com o Instituto Brasileiro de Geogafia e Estatísticas, podem trazer importantes subsídios técnico-científicos para o estabelecimento de fontes de dados confiáveis para monitoramento das iniquidades étnico-raciais na mortalidade infantil no Brasil.
Como é amplamente reconhecido, há diversas dimensões de natureza histórica e sociopolítica que podem influenciar o que tem sido denominado de volatilidade da classificação étnico-racial no Brasil 28. Uma dessas dimensões se vincula ao fato de que políticas públicas, incluindo as ações afirmativas, podem alterar a composição étnico-racial, em particular pela valorização de segmentos historicamente vulnerabilizados. Em anos recentes, já se observam os efeitos dessa volatilidade, percentualmente de reduzida magnitude, o que constitui, de todo modo, tema que deve ser considerado em conjunção com as futuras análises das iniquidades raciais a partir dos sistemas de informação, uma vez que podem impactar tanto os desfechos como as estimativas populacionais utilizadas nos denominadores.
Em conclusão, os elementos que foram trazidos no presente trabalho, ao mesmo tempo em que reforçam a centralidade da dimensão étnico-racial nas iniquidades ligadas à sobrevivência de crianças menores de um ano, mostram que alterações incluídas no SINASC tornaram o panorama das iniquidades inconsistentes. Diante da relevância do debate étnico-racial no país, caberia uma aprofundada discussão teórico-metodológica com vistas a rever a normatização dos procedimentos de coleta e classificação de cor/raça nos SIS com dados acerca de crianças menores de um ano.
Agradecimentos
A pesquisa que resultou neste artigo foi apoiada pelos seguintes financiamentos: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP)/Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) (nº 25388.000526/2017-70, de 2016/2018); Wellcome Trust (nº 203486/Z/16/Z); e Fiocruz-Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) (TED 175/2018 - nº 25380.102279/2018-04). R. V. Santos é bolsista de produtividade em pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) (nº 308798/2021-0).
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