Cadernos de Saúde Pública
ISSN 1678-4464
36 nº.6
Rio de Janeiro, Junho 2020
ARTIGO
Pandemia por COVID-19 no Brasil: análise da demanda e da oferta de leitos hospitalares e equipamentos de ventilação assistida segundo diferentes cenários
Kenya Valeria Micaela de Souza Noronha, Gilvan Ramalho Guedes, Cássio Maldonado Turra, Mônica Viegas Andrade, Laura Botega, Daniel Nogueira, Julia Almeida Calazans, Lucas Carvalho, Luciana Servo, Monique Félix Ferreira
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311X00115320
COVID-19; Pandemias; Acesso aos Serviços de Saúde; Sistema Único de Saúde; Saúde Suplementar
Introdução
Desde que foi detectada em dezembro de 2019, a COVID-19 vem se alastrando pelos diferentes continentes, tendo sido caracterizada como uma pandemia pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Segundo a OMS, 80% dos pacientes com COVID-19 apresentam sintomas leves e sem complicações, 15% evoluem para hospitalização que necessita de oxigenoterapia e 5% precisam ser atendidos em unidade de terapia intensiva (UTI) 1. Dependendo da velocidade de propagação do vírus na população, os sistemas de saúde podem sofrer forte pressão decorrente da demanda extra gerada pela COVID-19.
Vários estudos têm sido conduzidos para avaliar a capacidade de atendimento hospitalar em diversos países. Uma das principais conclusões é que se nenhuma ação de ampliação da oferta de leitos ou de contenção do vírus for realizada, haverá alta probabilidade de saturação dos sistemas de saúde em um espaço de tempo relativamente curto 2,3,4,5,6,7,8. A demanda por hospitalizações entre os pacientes de COVID-19 é influenciada por diferentes fatores, tais como idade e condições preexistentes, com efeitos distintos nas sociedades em que a pandemia avança 2,3,4,5,6,7,9,10,11.
Para o Brasil, estudos sobre o tema também têm sido desenvolvidos, tanto com abrangência nacional 12,13,14 como regional 15,16,17,18. Castro et al. 12 estimaram a data de colapso do sistema de saúde nas macrorregiões onde estão localizadas diversas capitais brasileiras. A precisão das datas apresentadas, no entanto, é suscetível aos vários pressupostos adotados nas diferentes simulações. Rache et al. 13,14 apontaram as regiões de saúde com maior vulnerabilidade à pandemia da COVID-19, assim como a necessidade de leitos de UTI. As estimativas de oferta foram realizadas considerando-se apenas leitos do Sistema Único de Saúde (SUS) e não levaram em consideração fatores demográficos associados à variação regional dos casos.
O objetivo do presente artigo é analisar a pressão sobre o sistema de saúde no Brasil decorrente da demanda adicional gerada pela COVID-19. Os serviços analisados são leitos gerais, de UTI e equipamentos de ventilação assistida. Dois conjuntos de simulações são realizados, um com a oferta conjunta SUS e privada, e outro apenas com a oferta SUS. As estimativas consideram as diferenças no perfil etário em relação às taxas de infecção e de internação. Diferentes cenários para as taxas de infecção e horizontes temporais foram definidos devido ao desconhecimento sobre a verdadeira trajetória da COVID-19 no território nacional. Como o Brasil é um país de grandes dimensões, com presença de áreas remotas, as desigualdades de acesso geográfico podem significar barreiras fundamentais para a obtenção do cuidado no cenário pandêmico. Para os casos de hospitalização, nem sempre os atendimentos serão realizados no próprio município de residência, exigindo o encaminhamento destes pacientes. Dessa forma, foi também analisada a dificuldade de acesso para conseguir o atendimento, com base na distância média mínima percorrida entre o município de residência do paciente e o município mais próximo com hospital com leito de UTI.
Metodologia
O número de internações hospitalares foi estimado para as microrregiões (leitos gerais) e macrorregiões (leitos de UTI e aparelhos de ventilação mecânica) de saúde, segundo diferentes cenários de intensidade e duração da infecção por COVID-19. A regionalização foi definida baseando-se na classificação de 2019, na qual os municípios são divididos em 450 microrregiões e 118 macrorregiões de saúde, elaborada valendo-se dos Planos Diretores de Regionalização dos estados (PDR). Excluímos o Distrito Federal devido à sua peculiaridade político-administrativa.
Para o cálculo da demanda, foram usadas três funções distintas: (1) a população estimada para o ano de 2020 por grupos de idade e região de saúde; (2) distribuição proporcional por idade das taxas de infecção confirmadas por COVID-19; e (3) taxas específicas por grupo de idade de internação hospitalar geral e UTI por COVID-19. Utilizamos as estimativas populacionais por idade e município produzidas por Freire 19.
O número esperado de casos confirmados por idade foi calculado pela multiplicação das taxas de infecção e a proporção da população, ambas por grupo de idade, em cada localidade de análise. Posteriormente, normalizamos os valores obtidos de forma a totalizarem taxas de infecção equivalentes a 0,01%, 0,1% e 1% da população em cada região. Na etapa seguinte, calculamos o número total de internações em cada grupo etário ao multiplicar o número esperado de casos pelas taxas específicas por grupo de idade de internação geral ou UTI. Neste estudo, supomos que a demanda estimada por aparelhos de ventilação mecânica é igual à demanda estimada por leitos de UTI.
Como a cobertura dos testes de COVID-19 na população brasileira é ainda baixa, as informações sobre os casos confirmados da doença, internação hospitalar geral e de UTI por grupos de idade podem ser pouco confiáveis para serem utilizadas em simulações. Portanto, neste artigo, adotamos como padrão taxas específicas por idade estimadas para os Estados Unidos 9 e para a Espanha 20.
Utilizamos dois bancos de dados oficiais: Sistema de Informações Hospitalares do SUS (SIH/SUS) e Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES). As informações de internações hospitalares referem-se às realizadas pelo SUS em todo o ano de 2019, já as de oferta (CNES), aos registros do mês de dezembro deste mesmo ano. Foram excluídos os leitos obstétricos, pediátricos, hospital/dia e especiais (no caso de leitos gerais) e leitos pediátricos, neonatais e queimados (no caso de leitos de UTI). A exclusão dos leitos pediátricos e neonatais decorre da impossibilidade de atendimento da população adulta nestes leitos. Como a taxa de infecção e de internação por COVID-19 em crianças e adolescentes é muito baixa, a inclusão desses leitos geraria uma superestimação da oferta disponível.
Para cada um dos serviços i analisados (leitos gerais, de UTI e aparelhos de ventilação mecânica), calculou-se a taxa de ocupação em cada um dos cenários de tempo m analisados (Equação 1).
Em que: = número de dias disponíveis de cada serviço i no período m, com m = 1, 3 ou 6 meses;
= número de dias de permanência em cada serviço i e cenário de tempo m. Para o caso de aparelhos de ventilação mecânica, considerou-se o número de dias de permanência em UTI.
Para conhecer a demanda extra gerada pela COVID-19, calculou-se o total de dias de permanência em cada um dos cenários de taxa de infecção (), que adicionado ao total de dias de permanência observado em 2019 com base nas informações do SIH/SUS (
), resultou no total simulado de dias de permanência (
):
Em que: TI = taxa de infecção definida por cada um dos cenários (0,01%, 0,1% e 1%); = total de casos da COVID-19 em cada cenário, multiplicado pelo tempo médio de permanência hospitalar segundo o nível de agravo - 8 dias para casos mais leves e 10 dias para casos mais graves 21.
As estimativas da demanda total () por cada um dos serviços analisados i, em cada um dos cenários de tempo (m) e de infecção (TI), foram obtidas da seguinte forma:
Notem que além das internações por COVID-19, foram consideradas as demais causas de internação como fonte de ocupação dos leitos. Devido à indisponibilidade de informações, consideramos a taxa de ocupação dos leitos privados como sendo igual à média de cada micro/macrorregião estimada para os leitos SUS em 2019. Para entender a importância do setor privado na ampliação da oferta desses serviços, as simulações foram também realizadas excluindo-se os leitos deste setor. Um exercício adicional foi realizado considerando-se as taxas de infecção totais observadas no dia 4 de maio de 2020 em cada micro/macrorregião de saúde no Brasil, supondo que elas foram alcançadas em três cenários de tempo: 1, 3 e 6 meses. Os casos foram ajustados levando-se em conta um nível de cobertura dos testes de diagnóstico igual a 13% 22. Os procedimentos metodológicos para estimar as taxas de internação por idade em cada localidade foram os mesmos usados para as simulações realizadas no presente artigo.
Além das simulações, caracterizamos a oferta dos serviços hospitalares no Brasil, considerando o total de hospitais e distinguindo por natureza jurídica. Como o atendimento de alta complexidade é organizado no nível macrorregional, analisamos também a distância mínima que os indivíduos precisam percorrer para obter atendimento fora de seu município de residência. Para esse cálculo, foi utilizada a informação do município de residência do paciente e de localização do hospital com leito de UTI e o menor caminho a ser percorrido em transporte multimodal 23.
Resultados
Caracterização da oferta
Em 2019, o Brasil apresentava 8.139 estabelecimentos hospitalares e 490.397 leitos. Essa oferta equivale a aproximadamente 2,3 leitos por 1.000 habitantes, o que corresponde a praticamente metade da média observada em 2017 para os países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) 24. Ainda que distante da média da OCDE, a oferta de leitos totais no Brasil é equiparada a de países como Canadá, Reino Unido e Suécia, o que sugere que nossa oferta é relativamente condizente à de países com sistemas de saúde majoritariamente públicos e bem organizados. Uma diferença importante diz respeito à segmentação do sistema brasileiro, que tem consequências na composição público-privada no cuidado hospitalar.
O Brasil conta com 270.880 leitos gerais (clínicos e cirúrgicos) e 34.464 leitos de UTI adultos, sendo 66% e 48% disponíveis para o SUS, respectivamente. Chama a atenção o elevado número de hospitais de pequeno porte, 5.345 hospitais (66%), dos quais 70% têm até 29 leitos. Somente 10% dos estabelecimentos hospitalares são de grande porte (acima de 150). Embora em menor número, esses hospitais concentram 42% dos leitos, seguidos dos de médio porte (51 a 150 leitos), com 35%. A taxa de ocupação dos leitos gerais no SUS é relativamente baixa para os hospitais de pequeno porte, 24% (até 29 leitos) e 32% (entre 30 e 50 leitos), comparada a 75% nos hospitais de grande porte. Para leitos de UTI, percebe-se o esgotamento maior do sistema de saúde, principalmente, nos hospitais de grande porte, com taxa de ocupação média de 60% (médio porte) e 77% (grande porte).
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Figura 1 Distribuição da oferta de leitos gerais e de unidade de terapia intensiva (UTI) e aparelhos de ventilação mecânica. Brasil, 2019.
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Considerando somente os leitos gerais SUS
A oferta privada é nula em 36 microrregiões e varia de 0,03 leitos por 10 mil habitantes em São José de Mipibu (Rio Grande do Norte) a 11,5 em São José do Rio Preto (São Paulo)
A oferta de leitos de UTI está presente em todas as macrorregiões brasileiras, exceto na Litoral Leste/Jaguaribe no Ceará que tem oferta nula
A distribuição da oferta de aparelhos de ventilação mecânica entre as macrorregiões de saúde é apresentada nas
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Figura 2 Distribuição da distância média total percorrida para atendimento hospitalar dentro da própria macrorregião de residência e densidade demográfica média por macrorregião. Brasil, 2019.
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Pressão da demanda extra gerada pela COVID-19
Os resultados apresentados nesta seção foram estimados com base nas distribuições etárias de infecção e hospitalização norte-americanas. Os resultados com os parâmetros espanhóis são apresentados no Material Suplementar (https://cadernos.ensp.fiocruz.br/static/arquivo/suppl-e00115320-pt_4059.pdf). O padrão internacional escolhido pouco influencia as distribuições regionais e a demanda, principalmente para leitos de UTI e aparelhos de ventilação mecânica, mantendo as conclusões gerais independentemente do padrão adotado.
Leitos gerais
Considerando-se a oferta privada e a do SUS, os principais problemas começariam a surgir quando a taxa de infecção alcançasse 1% da população. Para taxas menores, 0,01% e 0,1%, independentemente do horizonte temporal, praticamente todas as 449 microrregiões estariam operando com níveis inferiores à sua capacidade (resultados disponíveis, mas não apresentados). Se a taxa de infecção por COVID-19 atingir 1% em 1 mês, 136 microrregiões de saúde no Brasil (30%) estariam com sua capacidade comprometida
Figura 3 Percentual de leitos gerais e de unidade de terapia intensiva (UTI) ocupados em cada micro/macrorregião de saúde, considerando taxas de infecção por COVID-19 igual a 1% da população e três horizontes temporais: 6 meses, 3 meses e 1 mês. Brasil.
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Excluindo os leitos privados, o quadro se tornaria mais grave. A uma taxa de infecção de 1% em 1 mês, o colapso do sistema seria observado em todas as grandes regiões
Leitos de UTI
Os resultados da simulação evidenciam uma situação mais preocupante em relação a leitos de UTI. Esses resultados, contudo, dependem da velocidade de propagação da infecção em cada macrorregião de saúde. Em um cenário mais otimista (taxa de infecção de 0,01% em 6 meses), contando com a oferta SUS e privada, seria observada uma sobrecarga em apenas 5 macrorregiões de saúde, sendo uma localizada em Minas Gerais (Triângulo do Norte), duas em Santa Catarina (Planalto Norte/Nordeste e Foz do Rio Itajaí) e duas no Ceará (Sertão Central e Litoral Leste/Jaguaribe) (resultados disponíveis, mas não apresentados). Em Sertão Central, a oferta de leitos de UTI ocorreria somente pelo setor privado (30 leitos), não havendo nenhum leito disponível para o SUS. A macrorregião Litoral Leste/Jaguaribe (Ceará) sequer tinha oferta de leito de UTI cadastrada em dezembro de 2019 no CNES.
Um cenário dramático seria observado se uma taxa de infecção mais elevada, de 1%, for alcançada em 1 mês
Aparelhos de ventilação mecânica
No caso dos aparelhos de ventilação mecânica, consideramos a oferta conjunta pública e privada. Apesar de ser possível identificar no CNES os aparelhos por natureza jurídica, esta informação pode não refletir exatamente a sua disponibilidade no setor público ou privado devido à forma como os dois setores interagem no sistema de saúde. Embora menos severos, os resultados também são preocupantes. No cenário mais pessimista, praticamente todo o sistema iria ao colapso, com 97% das macrorregiões apresentando comprometimento de sua capacidade de atendimento. Em 51 macrorregiões, o sistema de saúde não teria condições de atender a mais de 50% dos pacientes. O Nordeste (64%) e o Norte (57%) do país apresentariam a maior proporção de macrorregiões nessa situação mais crítica
Figura 4 Percentual de aparelhos de ventilação mecânica ocupados por macrorregião de saúde, considerando taxas de infecção por COVID-19 igual a 1% da população e três horizontes temporais: 6 meses, 3 meses e 1 mês. Brasil.
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Simulações com os níveis de infecção observados em cada micro/macrorregião de saúde
Esta seção apresenta as simulações baseadas nas taxas de infecção observadas no dia 4 de maio de 2020 em cada localidade, com correção para sub-registro. O objetivo é avaliar o estágio atual da propagação e sua distribuição desigual no território nacional. Ao considerar a heterogeneidade da taxa de infecção entre regiões, estas simulações permitem controlar indiretamente por outros fatores que afetam a velocidade de propagação. Comparamos três cenários de tempo, levando-se em conta a oferta conjunta de leitos públicos e privados, para avaliar em que medida o achatamento da curva aliviaria o sistema de saúde. A análise mantém a oferta e taxa de ocupação dos leitos em níveis de 2019. Como o primeiro caso confirmado de COVID-19 no Brasil foi em 26 de fevereiro, o tempo que essas taxas foram alcançadas em cada localidade no país é inferior a 3 meses. No Brasil, até a data analisada, 6,7% das microrregiões de saúde não tinham registros de infecção por COVID-19. Dentre aquelas com casos, as taxas de infecção corrigidas variavam entre 0,007% e 2,3%. Aproximadamente 49% das microrregiões tinham taxas inferiores a 0,1%, já 3% experimentavam taxas maiores que 1%, localizadas principalmente no Amazonas e Amapá.
Analisando a pressão da demanda sobre leitos gerais
Figura 5 Percentual de leitos gerais e de unidade de terapia intensiva (UTI) e aparelhos de ventilação mecânica ocupados, considerando taxas de infecção por COVID-19 observadas (corrigidas por sub-registros) em cada micro/macrorregião de saúde e três horizontes temporais: 6 meses, 3 meses e 1 mês. Brasil.
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Para leitos de UTI
Discussão
Os resultados encontrados evidenciam uma situação crítica do sistema de saúde para atender à demanda potencial gerada pela pandemia da COVID-19. Essa situação é preocupante porque resulta em aumento da mortalidade nos locais em que a oferta dos serviços não está preparada. Contabilizando a oferta pública e privada, diversas microrregiões e macrorregiões de saúde operariam além de sua capacidade, comprometendo o atendimento principalmente a pacientes com sintomas mais severos. O cenário é pior para leitos de UTI e no Norte e Nordeste do país. A presença de vazios assistenciais pode levar o sistema ao colapso, mesmo com taxas menos elevadas de infecção. Apesar dos problemas de oferta detectados, a propagação mais tardia da COVID-19 no interior do Brasil cria uma janela de oportunidade importante para a reorganização do sistema de saúde local e adoção de medidas de mitigação da propagação da infecção. Ressalta-se, contudo, que para algumas localidades no Norte e Nordeste a propagação do vírus já é uma realidade e vem ocorrendo de forma relativamente acelerada, sofrendo pressão também do lado da demanda, como em Manaus e Fortaleza 25. Nossas simulações realizadas com base nas taxas de infecção observadas até o dia 4 de maio confirmam a fragilidade da oferta dessas duas regiões, associada a uma propagação acelerada da doença. No Sudeste, apesar da maior disponibilidade de oferta, as taxas e velocidade de infecção em algumas localidades estão maiores 25. Em São Paulo e no Rio de Janeiro, além da pressão da demanda, uma questão importante é o papel do setor privado, crucial para a ampliação da oferta.
O estudo apresenta três mensagens relevantes para o sistema de saúde no contexto da pandemia. A primeira refere-se à necessidade de se reduzir a velocidade de propagação da COVID-19 na população brasileira. Conter a propagação será fundamental para aliviar a pressão sobre o sistema de saúde e permitirá um tempo maior para a reorganização da oferta. Dada a heterogeneidade regional, tanto em relação à oferta como em relação às taxas de infecção, não será possível adotar uma única forma de contenção da propagação do vírus no Brasil. Diferentes medidas de contenção estão sendo implantadas no cenário internacional. A forma como vêm sendo adotadas é muito variada entre os países, dependendo do estágio e velocidade de propagação da doença, especificidades do sistema de saúde, além de aspectos sociais, econômicos e políticos 26. De acordo com Canabarro et al. 27, as medidas já implantadas em algumas cidades e estados brasileiros, como cancelamento de aulas em todos os níveis, distanciamento social e quarentena voluntária, têm contribuído para reduzir o número de casos de infecção e postergação do pico de contágio. Devido a questões econômicas, há uma pressão para a suspensão dessas medidas. Se esse processo não for feito de forma gradual e coordenada, considerando as especificidades de cada município e região, os riscos para a saúde podem ser catastróficos. Deve-se avaliar a capacidade de atendimento do sistema de saúde em cada localidade, monitorar a taxa básica de reprodução do vírus e ampliar os testes laboratoriais para o rastreamento e isolamento dos casos confirmados 27,28. O teste em massa permite a implantação de uma estratégia mais otimizada de mitigação da propagação da doença, evitando ações mais drásticas que teriam consequências mais graves sobre o setor produtivo 28. Além disso, sem essas informações é difícil dimensionar a demanda em cada localidade para adequar a oferta. Devido às dificuldades que países de dimensão continental como o Brasil enfrentam, a testagem plena não seria uma opção factível. No entanto, uma cobertura mais elevada poderia ajudar a reduzir a velocidade de propagação e as consequências econômicas para o país. Comparativamente a outros países, o total de testagem no Brasil é ainda muito baixo 26,29.
A segunda mensagem diz respeito à necessidade de se expandir os leitos disponíveis. O setor privado contribui para amortecer o déficit de demanda, mas em várias macrorregiões, dependendo da velocidade com que a infecção se propaga, a oferta conjunta dos dois setores não seria suficiente. Nesse cenário, algumas medidas podem contribuir para ampliar a oferta dos serviços hospitalares, além da colaboração com o setor privado. A construção imediata de hospitais de campanha é necessária e deve vir acompanhada de uma política de alocação de profissionais de saúde e insumos adequados, principalmente onde a oferta é incipiente. A ampliação da oferta já vem sendo verificada em diversas localidades no Brasil. Até o dia 20 de abril, de acordo com o CNES, foram organizados 80 hospitais de campanha, resultando em um incremento de cerca 6.300 leitos. Nessa expansão da oferta, o papel do Governo Federal é fundamental principalmente devido a três aspectos: normatização de uma regra única para relação público/privado; economias de escala e ganhos de barganha na compra de insumos; provimento direto em regiões que não têm capacidade de alavancar esta oferta de forma imediata.
Para o dimensionamento da oferta no longo prazo é necessário ainda considerar o fluxo de demanda usual do sistema, na medida em que há um limite temporal para a postergação de internações eletivas de forma a não comprometer a saúde desses pacientes. Em nossas simulações, descontamos os leitos que são utilizados para o tratamento de outras morbidades, conforme a taxa de ocupação de 2019. Esse procedimento é importante uma vez que não podemos assumir que a demanda por outras causas deixará de ocorrer ou de serem atendidas devido a COVID-19.
É importante ressaltar ainda o papel dos hospitais de pequeno porte, que representam aproximadamente 66% dos estabelecimentos hospitalares no Brasil. Esses hospitais operam a uma taxa de ocupação muito baixa (26%), em contraposição à dos hospitais de maior porte (75%). Existe, portanto, uma capacidade ociosa no sistema hospitalar, mas ela está presente com maior intensidade em hospitais com menor resolutividade 30. Os hospitais de pequeno porte não estão preparados para o tratamento de pacientes com sintomas mais severos da COVID-19 devido ao alto grau de especialização dos recursos necessários. Dessa forma, a expansão da oferta via hospitais de pequeno porte poderá ser limitada.
A terceira mensagem faz referência à própria organização da oferta dos serviços de saúde que é regionalizada. Em situações de demanda usual, esse desenho é adequado devido à presença de economias de escala. Mas em situações de pandemia, esse desenho pode não ser adequado se a distância que o paciente tiver de percorrer for muito alta dada a rapidez da evolução da doença. Este trabalho mostra que para 8% dos municípios brasileiros a distância média percorrida para obter atendimento de UTI é superior a 240km. As maiores distâncias são percorridas na Regiões Norte, com destaque para o Amazonas e Amapá. Dessa forma, é necessário organizar o encaminhamento dos pacientes em condições e tempo adequados para conter a evolução da doença. Isso dependerá, de um lado, da oferta adequada de meios de transporte (terrestres ou aéreos) e, de outro, da capacidade dos municípios de referência da micro/macrorregião em absorver essa demanda. Nesse contexto, ter um sistema de regulação dos leitos dinâmico para otimizar e coordenar o encaminhamento da demanda dentro de cada região será crucial. Devido à rapidez com que os casos graves evoluem, é fundamental que se organize a lógica do referenciamento para evitar tempo de espera que pode levar pacientes ao óbito. O problema maior é quando a própria macrorregião de saúde está deficitária em termos de leitos, conforme detectado nos exercícios de simulação que realizamos.
As estimativas geradas por nossas simulações apresentam pelo menos três limitações. A primeira é o uso dos parâmetros internacionais para estimar a demanda por internações. Nesse caso, estamos supondo que as taxas específicas por idade de internações hospitalares gerais e de UTI por COVID-19 no Brasil serão iguais às norte-americanas ou espanholas, tanto em relação ao seu nível quanto em relação à sua estrutura por idade. Embora existam informações sobre as taxas de infecção e hospitalização por grupo etário para o Brasil, a cobertura ainda é baixa. Análises preliminares indicam uma similaridade na distribuição de taxas de infecção por idade no Brasil em relação aos Estados Unidos. O caso espanhol apresenta taxas relativamente mais elevadas e mais envelhecidas (Material Suplementar; https://cadernos.ensp.fiocruz.br/static/arquivo/suppl-e00115320-pt_4059.pdf). Desse modo, como a desagregação por grupo etário é um diferencial metodológico deste trabalho, optamos por manter os parâmetros internacionais focando a análise das estimativas baseadas no caso norte-americano.
A segunda limitação é referente à heterogeneidade espacial das taxas de morbidade que podem afetar os desfechos de internação por COVID-19 em cada microrregião 31. Em certa medida, parte dessa variação foi captada em nosso estudo por meio da distribuição da população por idade. Entretanto, mesmo considerando que a transição de saúde e demográfica seja correlacionada, podem restar variações regionais na morbidade dentro dos grupos de idade.
Finalmente, nosso estudo não leva em consideração as necessidades de profissionais diretamente envolvidos na assistência aos pacientes, tampouco aqueles envolvidos no suporte e higienização que são essenciais para o funcionamento adequado dos hospitais na resposta à pandemia. Apesar dessas limitações, nossos resultados fornecem um diagnóstico importante da situação de oferta no Brasil no início da pandemia e em que medida a propagação do vírus vem afetando a capacidade de atendimento do sistema de saúde em cada localidade.
Agradecimentos
O presente trabalho foi realizado com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES; código de financiamento 001). K.V.M.S.N., G.R.G., M.V.A. e C.M.T. agradecem ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pelo desenvolvimento deste estudo, por meio da concessão da bolsa de produtividade. J.A.C. também agradece à mesma entidade pela bolsa de doutorado. Todos os autores agradecem os comentários de Pedro Amaral e o auxílio técnico de Jeferson Andrade, ambos da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Referências
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