Cadernos de Saúde Pública
ISSN 1678-4464
35 nº.Suplemento 3
Rio de Janeiro, 2019
ARTIGO
Iniquidades étnico-raciais nas hospitalizações por causas evitáveis em menores de cinco anos no Brasil, 2009-2014
Yasmin Nascimento Farias, Iuri da Costa Leite, Marilda Agudo Mendonça Teixeira de Siqueira, Andrey Moreira Cardoso
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311X00001019
Hospitalização; Saúde Infantil; Situação de Saúde dos Grupos Étnicos; Iniquidade em Saúde; Índios Sul-Americanos
Introdução
A morbidade hospitalar é um importante componente do perfil epidemiológico, refletindo a gravidade das doenças que acometem a população, o acesso e a utilização dos serviços de saúde 1,2. Alguns agravos à saúde são particularmente sensíveis à organização da atenção primária, tendendo a existir internações reduzidas quando ações de prevenção, diagnóstico e tratamento de doenças agudas, e controle e acompanhamento das doenças crônicas são desenvolvidas de forma adequada e oportuna. As internações por essas causas têm sido chamadas de internações por condições sensíveis à atenção primária (ICSAP) e utilizadas em diversos países como um indicador de efetividade da atenção primária à saúde (APS) 2. Portanto, taxas de ICSAP elevadas em um segmento populacional sugerem limitações na cobertura e/ou na resolubilidade dos problemas de saúde na APS, evidenciando uma situação de vulnerabilidade social 3,4,5. Cada país ou região, incluindo o Brasil, busca organizar sua lista de ICSAP com base nos padrões de saúde e organização da atenção à saúde, e nos recursos e possibilidades de intervenção disponíveis 2.
No Brasil, apesar das expressivas melhorias nos indicadores de morbimortalidade na infância 6, desigualdades regionais e étnicas em saúde infantil vêm sendo sistematicamente apontadas 7,8,9,10,11. Por exemplo, há poucos trabalhos publicados que analisam a morbidade hospitalar em crianças indígenas no país. Eles são restritos a recortes geográficos locais ou a grupos étnicos específicos, e revelam padrões de morbidade indígena compatíveis com aqueles verificados nos segmentos sociais mais vulneráveis, sobressaindo as internações por causas infecciosas, com destaque para as infecções respiratórias agudas (IRA) e diarreia, além de apresentarem elevada carga de ICSAP 12,13.
O Sistema de Informações Hospitalares do Sistema Único de Saúde (SIH/SUS) é uma importante base de dados relativa à morbidade hospitalar no Brasil, ao considerar as internações ocorridas na rede hospitalar pública e conveniada ao SUS 14, e albergar grande parte das internações hospitalares ocorridas no país (Departamento de Informática do SUS. http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/sih/midescr.htm, acessado em 09/Set/2018). A variável cor/raça foi inserida no SIH/SUS em 2008, possibilitando desde então análises da morbidade hospitalar com recorte étnico-racial de abrangência nacional. Embora o monitoramento das causas de hospitalização nessa perspectiva seja considerado uma ferramenta importante na investigação de iniquidades étnico-raciais em saúde 15, ela ainda é pouco explorada, particularmente no segmento infantil.
O presente estudo tem por objetivo analisar as hospitalizações de crianças menores de cinco anos no Brasil registradas no SIH/SUS no período de 2009 a 2014, segundo cor/raça, com vistas a identificar a relevância dos principais grupos de causas de internação e a importância relativa das IRA, a magnitude das taxas de ICSAP segundo cor/raça e as iniquidades étnico-raciais nos perfis das hospitalizações por causas, com ênfase nas doenças respiratórias agudas e ICSAP, agravos mais frequentes em grupos sociais mais vulneráveis da população brasileira.
Material e métodos
Desenho de estudo e população
Estudo descritivo da morbidade hospitalar por causas em crianças menores de cinco anos no Brasil e regiões. A fonte de dados usada foi o SIH/SUS, disponível em livre acesso na plataforma on-line do Departamento de Informática do SUS. Foram selecionadas todas as hospitalizações de crianças menores de cinco anos no período de 2009 a 2014 no país, sendo excluídas as Autorizações de Internações Hospitalares (AIH) de longa permanência. O recorte temporal decorre da variável cor/raça ter sido disponibilizada no SIH/SUS em 2009, e de 2014 ser o último ano com informações consolidadas no momento da análise.
Causas da hospitalização
Foram consideradas as seguintes causas de internação com base na 10ª revisão da Classificação Internacional de Doenças (CID-10): (1) capítulos da CID-10; (2) internações por infecções respiratórias agudas (IRA) (J00-J22); (3) internações por pneumonia e influenza (P&I) (J10-J18); e (4) internações por condições sensíveis à atenção primária (ICSAP), com base na lista brasileira 2.
A análise específica das internações por IRA e P&I decorre do fato de estudos demonstrarem a persistência destas causas de internação em crianças no Brasil e expressiva magnitude destas causas de internação em populações vulneráveis, em particular em indígenas no país e em outras regiões do mundo 12,16.
Análise dos dados
Realizou-se uma análise descritiva das hospitalizações, estimando-se as internações proporcionais específicas por sexo, faixa etária (< 1 ano e 1-4 anos), região de residência e tempo de permanência hospitalar segundo categorias de cor/raça, em dois triênios (2009-2011 e 2012-2014). Calcularam-se ainda as internações proporcionais por causas (Capítulos da CID-10; IRA; P&I; e ICSAP) segundo cor/raça. Em seguida, foram estimadas as taxas brutas de ICSAP com os respectivos intervalos de 95% de confiança (IC95%) por categoria de cor/raça, para o Brasil e regiões, após a imputação múltipla dos dados faltantes de cor/raça. Por fim, foram estimadas as razões de taxas (RT) de ICSAP ajustadas por idade e sexo, com IC95% entre as categorias de cor/raça, para o Brasil e regiões, antes e após a imputação múltipla da variável cor/raça.
A imputação foi feita assumindo-se que os valores faltantes são aleatórios (missing at random - MAR), ou seja, a probabilidade de ausência de informação em uma variável específica Y não está relacionada com os seus valores após ter sido controlada por um conjunto de variáveis supostamente associado com o mecanismo de ocorrência dos dados faltantes. Métodos para dados faltantes aleatórios estão bem documentados, e seus resultados têm sido considerados satisfatórios mesmo quando violado o pressuposto de que o mecanismo de geração de valores faltantes não esteja relacionado aos parâmetros estimados 17,18.
Tendo em vista que as metodologias utilizadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para estimar a população indígena foram distintas nos censos demográficos de 2000 e 2010 (https://ww2.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/default.shtm, acessado em 03/Out/2018), optou-se por calcular as taxas de ICSAP em um período único agregado, usando-se dados populacionais do Censo 2010, segundo macrorregião, sexo, faixa etária (< 1 ano, 1-4 anos) e cor/raça. Assim, as taxas referentes ao período 2009-2014 foram calculadas considerando-se o número de internações ocorridas neste período dividido por seis vezes a população de 2010, em cada segmento populacional decorrente da combinação das quatro variáveis citadas. As taxas brutas de internação foram estimadas por meio de um modelo de Poisson tendo como offset as respectivas populações. As razões de taxas para a variável cor/raça foram obtidas utilizando-se um modelo binomial negativo, uma vez que testes estatísticos evidenciaram a presença de sobredispersão nos dados analisados. A categoria branca foi usada como referência, e as taxas foram ajustadas por idade, sexo e macrorregião, No processo de imputação, utilizou-se o procedimento de imputação múltipla (Proc MI), e na análise dos modelos de Poisson e Binomial Negativo, o procedimento para modelos lineares generalizados (Proc Genmod), todos disponíveis no software SAS v9.3 (https://www.sas.com/).
Resultados
No período de 2009 a 2014 foram registradas pelo SIH/SUS 7.158.317 hospitalizações em crianças < 5 anos, correspondendo a uma média anual de 1.193.052 internações. Apenas a variável cor/raça apresentou registros não informados. No Brasil, verificou-se 37,9% de incompletude dessa variável durante o período acumulado de 2009-2014, com menor proporção no ano de análise mais recente (2014: 33,7%). No segundo triênio da análise (2012-2014) foi observado um melhor preenchimento da variável cor/raça no Brasil e nas regiões. As proporções mais elevadas de cor/raça ignorada em todo o período ocorreram no Centro-oeste, em 2011 e 2012, 54,8% e 54,1% respectivamente, seguido pelo Nordeste (ano 2011: 50,8%), atingindo o menor valor na Região Sul (ano 2014: 20,7%) (dados não tabulados).
Houve queda no número absoluto de internações no período de estudo, passando de 1.279.239, em 2009, para 1.123.440, em 2014. Essa redução foi confirmada em todas as categorias de cor/raça, na comparação dos triênios, exceto na categoria amarela, na qual houve um incremento de 15% nas internações no segundo triênio
Tabela 1 Características demográficas e tempo de permanência hospitalar em < 5 anos, segundo categorias de cor/raça. Brasil, triênios 2009-2011 e 2012-2014 (Sistema de Informações Hospitalares do Sistema Único de Saúde).
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As doenças do aparelho respiratório (Capítulo X da CID-10) apareceram no topo, respondendo por 37,5% das internações em menores de cinco anos no Brasil
As crianças indígenas foram proporcionalmente mais acometidas por causas respiratórias (53%), seguidas pelas crianças pretas (40,8%), pardas (39,3%), brancas (38,6%) e amarelas (31,1%). As IRA representaram 47% do total de hospitalizações indígenas, ou 88,7% das internações por causas respiratórias, superando em 57% as crianças pretas, que ficaram na segunda posição em proporção de internação por IRA. P&I corresponderam a 43,3% das internações indígenas, o que representa 92,1% das admissões por IRA neste grupo. Entre as demais categorias de cor/raça, as internações por P&I variaram de 19 a 26%
Tabela 2 Hospitalização proporcional por causas em < 5 anos, segundo categorias de cor/raça. Brasil, 2009-2014.
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A proporção de ICSAP no período de estudo foi de 34,5% para o conjunto da população infantil. Essa proporção variou de 26,7%, em crianças amarelas, a 44,8%, em indígenas. Quando as ICSAP foram desagregadas por grupos de causas e categorias de cor/raça, observou-se 22,8% e 17,8% de internações por gastroenterites infecciosas em indígenas e pardos, respectivamente, e as crianças brancas apresentaram 9,7% de hospitalizações por estas causas. Internações por asma foram superiores em crianças de cores preta (6,7%) e parda (6,6%). As pneumonias bacterianas sobressaíram nos indígenas (6,5%) e contribuíram com menores proporções nas categorias branca (4,3%) e amarela (2,9%). No grupo das demais doenças pulmonares, as crianças pretas (6,3%) apresentaram mais internações. Já no grupo de infecções do rim e do trato urinário, verificou-se maior proporção de hospitalização na categoria branca (2%) e menor em indígenas (0,85%).
No Brasil, a taxa mais elevada de ICSAP foi observada em crianças indígenas (97,3/1.000 crianças), seguidas por crianças de cores parda (40,0/1.000 crianças), branca (20,9/1.000 crianças), preta (16,8/1.000 crianças) e amarela (14,8/1.000 crianças)
Tabela 3 Taxas brutas de internações por condições sensíveis à atenção primária (ICSAP) em < 5 anos, e seus respectivos intervalos de 95% de confiança (IC95%), segundo categorias de cor/raça e regiões. Brasil, 2009-2014.
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De forma geral, a imputação de dados faltantes de cor/raça não modificou a direção das medidas de associação em relação às estimativas brutas
Tabela 4 Razões de taxas (RT) de internações por condições sensíveis à atenção primária (ICSAP) entre categorias de cor/raça em < 5 anos, ajustadas por idade, sexo e região, com seus respectivos intervalos de 95% de confiança (IC95%), obtidos antes e após a imputação de dados faltantes de cor/raça. Brasil e regiões, 2009-2014.
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Discussão
Embora os registros do SIH/SUS não tenham sido planejados para a análise de situação de saúde, constituem a mais ampla fonte de dados sobre morbidade hospitalar no país 14, viabilizando a caracterização de importante dimensão da morbidade populacional, a identificação de iniquidades em saúde e a avaliação do impacto de políticas de saúde sobre as internações. Neste estudo, foi evidenciado que as hospitalizações de crianças menores de cinco anos no âmbito do SUS reduziram no período de 2009 a 2014, com destaque para a faixa etária de 1 a 4 anos. A análise das internações por causas revelou que no Brasil as doenças do aparelho respiratório, principalmente a pneumonia e influenza, respondem pela maior proporção das hospitalizações em menores de cinco anos, o que também foi verificado em todas as categorias de cor/raça. Apesar disso, verificaram-se desigualdades na proporção de internações por causas respiratórias e infecciosas entre categorias étnico-raciais, cujas magnitudes são mais elevadas em crianças indígenas, pretas e pardas. As doenças respiratórias (37,4%) e as infecciosas e parasitárias (19,3%) ocuparam o primeiro e o segundo lugares em proporção de internações no conjunto das crianças no Brasil. O mesmo foi verificado para crianças indígenas (53% e 26,1%), pretas (40,8% e 17,3%) e pardas (39,3% e 24,3%), nas quais essas duas causas respondem, em conjunto, respectivamente, por 79,1%, 58,1% e 63,6% das internações. Dentre as crianças brancas e amarelas, as afecções perinatais assumiram a segunda posição, à frente das causas infecciosas e parasitárias. Apenas dois estudos integrantes de uma revisão sistemática sobre causas de hospitalização em menores de cinco anos no Brasil abordam internações em âmbito nacional utilizando dados do SIH/SUS, mas nenhum descreve as internações por cor/raça, uma vez que no período investigado esta variável ainda não constava da AIH 19,20. Em um desses estudos 19, reportou-se que 40,3% e 21,6% das internações em crianças ocorridas entre 1998 e 2007 foram decorrentes de causas respiratórias e infecciosas e parasitárias, respectivamente, percentuais discretamente superiores aos verificados neste trabalho.
Em nossas análises, as IRA se destacaram como causas de hospitalização em crianças menores cinco anos no Brasil, respondendo por 28,2% das internações no geral e a 75% das internações pelo Capítulo X. Do mesmo modo, P&I corresponderam a cerca de 1/4 das internações no geral e a 87,2% das internações por IRA. A análise por cor/raça revelou predomínio de internações por IRA entre as crianças indígenas (47%), sobretudo por P&I (43,3%), e as demais categorias registraram cerca de 29% (parda, branca e preta) ou menos (amarela) de internações por esta causa. Cabe ressaltar que, em 2009, houve uma pandemia causada por um novo subtipo do vírus influenza A H1N1. Naquele ano, registrou-se elevada morbidade e mortalidade por gripe entre adultos jovens e crianças menores de cinco anos 21. No entanto, a relevância dessas causas de internação se perpetuou nos anos subsequentes, assim como já era relevante nos anos anteriores à pandemia. Fica evidente que as IRA persistem como importante agravo à saúde de crianças no Brasil, afetando principalmente grupos minoritários como os indígenas 22.
A proporção de ICSAP também foi mais elevada dentre os indígenas, e superou em 29,8% e 48,3% as proporções correspondentes no Brasil e nas crianças brancas, respectivamente. As gastroenterites foram as causas mais frequentes entre as ICSAP. Diferentes doenças respiratórias também se destacaram entre as ICSAP, entretanto, na lista brasileira somente as pneumonias de origem bacteriana são consideradas CSAP. A proporção de internações por essa causa foi mais elevada entre os indígenas, tal qual evidenciado em crianças menores de cinco anos da etnia Yanomami em Roraima 13. Achados similares foram reportados na Austrália, quando comparadas as internações aborígenes e não aborígenes 23. No nosso trabalho, a hospitalização por asma foi superior nas crianças pretas e pardas, demonstrando concordância com um estudo anterior 24. Num estudo com dados nacionais do SIH/SUS entre 1999 e 2006 25, as gastroenterites (40%) corresponderam às principais causas de ICSAP em menores de cinco anos, resultado similar ao encontrado no nosso trabalho (39%) nos anos mais recentes. Causas respiratórias como asma, pneumonias bacterianas e outras doenças pulmonares, também contribuíram expressivamente nas ICSAP, corroborando nossos resultados.
Dados do I Inquérito Nacional de Saúde e Nutrição dos Povos Indígenas26, realizado entre 2008-2009, revelam que as doenças diarreicas ainda são um problema de saúde relevante em populações indígenas em todas as regiões do país, sobressaindo o Norte e o Centro-oeste, com prevalências de diarreia de 38,1% e 21,1%, respectivamente. Essas são pelo menos 2,2 vezes maiores que a prevalência média de diarreia na população brasileira em geral (9,4%) 27 e corroboram as expressivas iniquidades verificadas nas ICSAP entre crianças indígenas e brancas no Norte e Centro-oeste do país. Alguns determinantes socioeconômicos e ambientais dessa situação são destacados na literatura, entre eles a pobreza, o saneamento básico precário, dificuldades de acesso à água potável, condições precárias de moradia, indisponibilidade de terra e restrições no acesso e qualidade da APS 26,28. Além disso, outros agravos muito comuns entre as populações indígenas costumam se sobrepor e contribuir para a manutenção do ciclo de adoecimento, tais como a desnutrição, a anemia e as IRA 26,29,30,31,32,33.
No Brasil, verificamos que a taxa de ICSAP em crianças indígenas superou em cerca de cinco vezes a taxa correspondente nas crianças brancas. As razões de taxas de ICSAP revelam alarmantes iniquidades étnico-raciais, particularmente no Norte e Centro-oeste, onde as crianças indígenas apresentaram cerca de 5 a 18 vezes a chance das crianças brancas de internar por alguma CSAP. Taxas de ICSAP em crianças Yanomami são três vezes superiores às correspondentes em crianças não indígenas de Roraima ou da Região Norte 13, fato que sugere que as iniquidades existem inclusive entre os povos indígenas e entre áreas de uma mesma região geográfica. A taxa de ICSAP em crianças aborígenes australianas menores que dois anos corresponde ao dobro da taxa dos não aborígenes 23, demonstrando que as iniquidades aqui observadas também são vistas em outros países com populações nativas.
Há certo consenso internacional de que os sistemas de saúde fortemente embasados na atenção primária são mais equânimes, de modo que o monitoramento das ICSAP contribuiria para a análise de impacto relacionado à expansão de cobertura, ao acesso de grupos vulneráveis e à organizações dos serviços de saúde 34. O debate acerca do uso das ICSAP como indicador de qualidade e efetividade da atenção primária vem crescendo no Brasil nos últimos anos 35,36,37,38. Grupos populacionais com limitações no acesso e qualidade da atenção à saúde tenderiam a apresentar maiores proporções e taxas de ICSAP 39. No entanto, estes autores alertam que deve haver cautela nas análises da evolução das ICSAP com vistas a discutir a efetividade da APS, pois tais indicadores sofrem efeitos dos contextos específicos, tanto relativos à organização dos serviços, quanto à cultura local. Os estudos publicados sobre ICSAP em crianças no Brasil não apresentam análises por cor/raça 3,4,5,36,40, limitando comparações com os nossos achados.
Nossos resultados são alarmantes no que tange às iniquidades reveladas nas taxas de ICSAP entre crianças indígenas e brancas no Norte e, particularmente, no Centro-oeste, assim como entre crianças pardas e brancas no Norte e Nordeste. Tais iniquidades podem ainda estar subestimadas, uma vez que muitas crianças com doença grave, particularmente nas populações mais vulneráveis e de áreas mais remotas, podem falecer antes de acessar a rede hospitalar, haja vista as altas taxas de mortalidade infantil entre indígenas e pretos 7. Uma considerável parcela das hospitalizações infantis por IRA e diarreia, entre outros agravos, poderia ser evitada ou reduzida por meio de melhorias nas condições de vida, que vão desde a adequada nutrição, acesso e oferta oportuna e de qualidade de serviços de saúde, a ambientes de moradia satisfatórios 41. No que se refere à situação dos povos indígenas, globalmente são reconhecidas as desigualdades nos indicadores sociais e de saúde deste segmento populacional em comparação às sociedades nacionais das quais fazem parte 42. Nossos resultados reforçam a hipótese de que as crianças indígenas experimentam condições de vida mais precárias e limitado acesso e qualidade da APS, quando comparadas às demais crianças no Brasil.
Conforme postulado por Botelho & Portela 39 sobre a cautela na interpretação do indicador de ICSAP, é possível supor que indivíduos em desvantagem social, como povos indígenas e outros que habitam áreas mais remotas, apresentem contextos culturais próprios e operacionalização dos serviços de saúde muito particulares, que exigem remoções para hospitais por indicações não clínicas, hipótese reforçada pelo menor tempo de permanência hospitalar verificado entre os indígenas. Isso justificaria, ao menos em parte, as iniquidades reveladas. No entanto, como citado anteriormente, as condições de vida desses povos são precárias e, possivelmente, os serviços de saúde no nível primário de atenção podem não estar disponíveis em tempo oportuno para garantir a resolubilidade da maioria das CSAP, conforme esperado na APS. Ressalta-se a que a formulação de políticas e rearranjos no SUS, particularmente a implantação do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena, visa a enfrentar e superar possíveis cenários de iniquidades por meio da ampliação da cobertura e oferta de atenção diferenciada, adequada às demandas e especificidades locais 43, o que parece não ter sido satisfatoriamente atingido no período estudado, não obstante os grandes avanços observados na estruturação do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena e na ampliação da oferta e cobertura dos serviços de saúde à população indígena.
Os indicadores de ICSAP mais favoráveis encontrados para crianças pretas (Região Centro-oeste) e pardas (Região Sul) são considerados resultados inesperados e necessitam de mais investigações para sua compreensão. No entanto, possivelmente não refletem melhores condições de vida para crianças classificadas como pretas ou pardas, quando comparadas às brancas. Uma das explicações para esse achado poderia ser a excessiva restrição de acesso dessas populações aos serviços de saúde, resultando em limitada utilização da atenção hospitalar por parte das populações mais vulneráveis 44; outra possibilidade seria o oposto: essas populações poderiam estar sendo mais assistidas pelos programas de atenção primária difundidos no Brasil nos últimos anos, como a Estratégia Saúde da Família, resultando em menos ICSAP.
É importante destacar que as internações de crianças pertencentes a estratos socioeconômicos mais elevados podem estar sub-representadas nos registros do SIH/SUS, uma vez que utilizam serviços particulares, atenuando eventuais iniquidades nas ICSAP entre categorias de cor/raça, ao tornarem mais homogêneos do ponto de vista socioeconômico os grupos étnico raciais 34. Dessa forma, caso a cobertura do SIH/SUS fosse mais ampla, esperaríamos potencializar as desigualdades observadas e compreender melhor esses resultados inesperados, que poderiam ser modificados. Além disso, análises ajustadas por local de residência e nível socioeconômico poderiam colaborar para a melhor compreensão dos resultados obtidos.
Verificou-se que a completude da variável cor/raça no SIH/SUS está bastante aquém dos demais sistemas de informação em saúde, tais como de Mortalidade (SIM) e Nascidos Vivos (SINASC), o que poderia afetar a análise das iniquidades 45. As demais variáveis usadas apresentaram 100% de completude. Para minimizar potenciais distorções na comparação das internações por cor/raça, aplicou-se a técnica de imputação múltipla de dados para estimar os dados faltantes. A expressiva discrepância das razões de taxas de ICSAP de crianças indígenas e brancas antes e após a imputação múltipla aponta para diferenciais no preenchimento da variável cor/raça, com menor grau de observância entre as crianças indígenas. Revela ainda que a desigualdade socioeconômica atua em diferentes aspectos da vida dos indivíduos, incluindo aquele referente à qualidade de suas informações nos sistemas de registros de saúde. A imputação múltipla tem sido descrita como o método mais apropriado para lidar com o problema decorrente de informações faltantes, principalmente em um contexto no qual quase 40% das informações sobre cor/raça não foram preenchidas. O descarte desse grande volume de registros pode enviesar as estimativas. Por outro lado, cabe ressaltar que o processo de imputação múltipla não está imune a problemas, podendo também resultar em estimativas enviesadas, sendo esta ocorrência maior quando o número de observações é pequeno 46,47, o que está longe de ser o caso do presente trabalho.
Problemas relacionados à confiabilidade das causas de internação são ressaltados em estudos com o SIH/SUS 14. As inconsistências se devem principalmente à baixa qualidade dos prontuários, codificação CID-10 equivocada ou falhas no faturamento. Seria pouco plausível supor que a confiabilidade das causas de internação estaria associada à cor/raça, minimizando seus impactos nas estimativas das iniquidades nas razões de taxas.
Conclusões
Neste trabalho, evidenciou-se importantes iniquidades entre os grupos étnico-raciais no tocante às causas de internação em menores de cinco anos e à internação por causas potencialmente evitáveis. Os indígenas apresentam as condições mais desfavoráveis quando comparados às demais categorias de cor/raça, com elevadas proporções de internação por pneumonia e diarreia, outras doenças infecciosas e parasitárias e CSAP, bem como taxas de ICSAP alarmantes, sobretudo quando comparadas às demais categorias de cor/raça.
Esse cenário de saúde apresenta claras repercussões sociais e econômicas para os indígenas, assim como para outras populações vulneráveis, e para o SUS, tendo em vista que as remoções hospitalares afetam a dinâmica das famílias e, por vezes, de toda a comunidade, e resultam em custos mais elevados do tratamento hospitalar. Estudos de contextos locais, particularmente em Distritos Sanitários Especiais Indígenas no Norte e no Centro-oeste, podem contribuir para uma melhor compreensão dos determinantes das ICSAP, a fim de adequar os serviços de saúde indígena às demandas efetivas da população, fazendo-se cumprir os propósitos previstos no Subsistema de Atenção à Saúde Indígena no Brasil. De todo modo, não restam dúvidas de que medidas de promoção da saúde, com a melhoria das condições de vida, saneamento e subsistência, bem como a garantia de acesso oportuno e qualificado à atenção primária à saúde, são necessárias para minimizar as internações por causas evitáveis. Tais resultados reafirmam a importância de se ter um Subsistema de Atenção à Saúde Indígena sensível às especificidades culturais e geográficas desses povos, capaz de compensar a extrema vulnerabilidade social a que estão expostos.
Agradecimentos
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) pelo apoio financeiro.
Referências
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