Cadernos de Saúde Pública
ISSN 1678-4464
35 nº.6
Rio de Janeiro, Junho 2019
ARTIGO
Indicador multidimensional de fatores de risco relacionados ao estilo de vida: aplicação do método Grade of Membership
Ingrid Freitas da Silva Pereira, Marcos Roberto Gonzaga, Clélia de Oliveira Lyra
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311X00124718
Comportamento Alimentar; Hábito de Fumar; Alcoolismo; Exercício; Estilo de Vida
Introdução
Uma das consequências dos processos de transição demográfica, epidemiológica e nutricional foi o aumento das doenças crônicas não transmissíveis (DCNT) e a sua consolidação mundial como principal causa de morbimortalidade. Em todo o mundo, as DCNT são responsáveis por mais de 67% das mortes registradas. Desses óbitos, cerca de 42% ocorrem prematuramente e mais de 70% se dão em países de baixa e média renda 1. As DCNT acarretam danos biológicos e sociais importantes, que vão desde perda de qualidade de vida, alto grau de limitações e incapacidades até elevado número de mortes prematuras e perda de produtividade 2.
Apresentando caráter múltiplo e complexo, a etiologia das DCNT envolve fatores de risco não modificáveis, como sexo, idade e características genéticas, e também fatores modificáveis relacionados aos comportamentos de estilo de vida, como o tabagismo, a alimentação inadequada, o consumo de álcool e a inatividade física, que são expressos por meio dos fatores de risco intermediários, como a hipertensão, a intolerância à glicose, as dislipidemias, o sobrepeso e a obesidade 3.
Ao conjunto de fatores de risco comportamentais, foi atribuída uma parcela de 30,3% da carga global de doenças no ano de 2015, expressa por anos de vida perdidos ajustados por incapacidade 4. Uma metanálise realizada com estudos desenvolvidos nos Estados Unidos, Europa, China e Japão apontou que a adoção de quatro comportamentos saudáveis combinados, relacionados ao estilo de vida, reduz em 66% o risco geral de mortalidade, considerando todas as causas de morte 5.
Em consonância com acordos firmados entre os países membros da Organização das Nações Unidas (ONU) 6, em 2011, o país lançou o Plano de Ações Estratégicas para o Enfrentamento das Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT) no Brasil, 2011-2022. Uma de suas metas é a redução da mortalidade precoce por DCNT e a prevenção dos seus principais fatores de risco (tabagismo, álcool, inatividade física, alimentação não saudável e obesidade), mediante avanços em seus indicadores 7.
A mensuração dos indicadores de fatores de risco permite a avaliação e o monitoramento no alcance das metas propostas, contribuindo com a estruturação da vigilância das DCNT no país e subsidiando o planejamento de políticas de prevenção e controle. Entretanto, ainda são escassos os estudos que incorporam a multidimensionalidade dos diversos fatores de risco em um único indicador e que consideram a heterogeneidade dos indivíduos, o que faz do método Grade of Membership (GoM) uma ferramenta interessante nesse contexto.
O GoM é um método de modelagem baseado na teoria de conjuntos difusos (fuzzy sets), e sua principal finalidade é identificar padrões latentes a partir de um conjunto de dados categóricos, em que os indivíduos podem pertencer parcialmente a múltiplos conjuntos 8. O método GoM contempla tanto a possibilidade de conformação de grupamentos quanto a heterogeneidade individual. Nesse sentido, os indivíduos podem partilhar características de múltiplos perfis, já que, devido à heterogeneidade individual, não é esperado que todos se adaptem perfeitamente e da mesma forma aos grupos formados.
O objetivo do presente estudo é, portanto, identificar perfis multidimensionais de fatores de risco relacionados ao estilo de vida em indivíduos com 30 anos ou mais de idade no Brasil, no ano de 2013, bem como descrever as prevalências desses perfis e características sociodemográficas e de autopercepção de saúde associadas.
Métodos
Trata-se de um estudo transversal, realizado a partir de dados secundários da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) de 2013 9. O plano de amostragem da PNS foi desenvolvido por conglomerados em três estágios, com estratificação das unidades primárias de amostragem. No primeiro estágio, foram selecionados os setores censitários; no segundo, os domicílios; no terceiro, um morador adulto (18 anos ou mais) com equiprobabilidade entre todos os demais moradores adultos de seu domicílio 9.
Na PNS, foram realizadas 64.348 entrevistas domiciliares e 60.202 entrevistas individuais com o morador selecionado no domicílio. Para este estudo, foram considerados os moradores com idade igual ou superior a 30 anos. A seleção dessa faixa etária se deu com o intuito de verificar os fatores de risco na população-alvo da mortalidade prematura, que é um indicador utilizado no controle das DCNT 1,7.
Foram excluídos 2.942 indivíduos que não apresentavam dados referentes às questões sobre estilo de vida, sendo a amostra final constituída por 45.881 indivíduos. Desses indivíduos, 301 (0,6%) não tinham dados disponíveis para o cálculo do índice de massa corporal (IMC). Portanto, eles foram considerados na análise como uma categoria de missing para a variável IMC.
Para a identificação dos perfis de fatores de risco relacionados ao estilo de vida, foi utilizado o método GoM. A aplicação do método GoM requer um conjunto de dados composto de I indivíduos, com J variáveis categóricas, com um número Lj de categorias. Iterativamente o modelo GoM estima dois conjuntos de parâmetros. O parâmetro gama (parâmetro individual), chamado de escore de pertinência ou escore GoM, é denotado por gik, e indica o grau de pertencimento do i-ésimo indivíduo ao k-ésimo perfil extremo. Esses escores variam de 0 a 1. O escore 0 indica que o indivíduo não pertence ao perfil K, ao passo que o escore 1 indica que ele tem todas as características do k-ésimo perfil.
O segundo parâmetro, lambda (parâmetro locacional), denotado por λkjl, descreve a probabilidade de ocorrência da categoria l da j-ésima variável no perfil K. Fornece, portanto, a magnitude com que a resposta l da variável j está associada ao k-ésimo perfil extremo. Os parâmetros λkjl caracterizam os perfis extemos e, por serem probabilidades de ocorrência do atributo, também podem assumir valores entre 0 e 1.
Os parâmetros gik e λkjl foram estimados por meio do programa R, versão 3.4.2 (http://www.r-project.org), a partir de uma rotina computacional desenvolvida como um R-Script, denominada GoMRcpp.R 10. Para a composição dos perfis extremos, foram incluídas 12 variáveis referentes a fatores de risco relacionados ao estilo de vida Quadro 1.
Quadro 1 Descrição das variáveis internas utilizadas na composição dos perfis de fatores de risco relacionados ao estilo de vida.
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Neste estudo, optou-se pelo uso de classificações de IMC diferenciadas para adultos e idosos. A adoção de um ponto de corte mais sensível para idosos considera as mudanças na composição corporal, decorrentes do envelhecimento, e evita a superestimação da prevalência, tanto de baixo peso quanto de excesso de peso nesse grupo. Dessa forma, devido à inviabilidade de o método GoM utilizar a variável IMC com quatro categorias para adultos e com três categorias para idosos, tendo em vista que a classificação de IMC utilizada para adultos faz a distinção entre as categorias de sobrepeso e obesidade, e a de idosos não faz essa diferenciação, optou-se por analisar o sobrepeso e a obesidade em adultos também como uma única categoria, denominada excesso de peso.
A análise dos dados foi conduzida a partir da formação de 2, 3, 4, 5 e 6 perfis extremos, e a definição do modelo com o número ótimo de perfis se deu a partir do critério de informação de Akaike (AIC), sugerido por Manton et al. 8. A regra de decisão elege o modelo com o menor valor da estatística AIC, representando, portanto, o modelo mais ajustado e que melhor descreve a estrutura latente dos dados.
Foi aplicada a metodologia proposta por Guedes et al. 11,12,13, com o objetivo de identificar um modelo final de máximo global, ou seja, um modelo de solução única, com vértices estáveis, que melhor descreva tanto os perfis extremos (conjunto de λkjl) quanto a heterogeneidade presente nos dados (gik) e, desta forma, corrigir problemas relacionados à identificabilidade e estabilidade dos parâmetros finais estimados. Assim, para cada modelo com K = 2, 3, 4, 5, 6, foram efetuadas trinta execuções do modelo com seleção aleatória dos primeiros λkjl, seguidas pela estabilização dos parâmetros em cada uma delas. Posteriormente, para a identificação da execução que representasse o modelo de máximo global para cada k = 2, 3, 4, 5 e 6, foi utilizado o localizador de máximo global ponderado em relação à moda (MGP-Moda).
Após definição do modelo final mais ajustado, a caracterização dos perfis foi feita com base na razão entre λkjl e a frequência marginal do atributo na população. Essa razão é conhecida como razão lambda frequência marginal (RLFM) e descreve quais atributos se associam com determinado perfil extremo. Nesse sentido, identifica quais características das variáveis internas apresentam maior probabilidade de ocorrência entre os indivíduos considerados tipos puros (com total pertinência ao perfil, gik = 1) quando comparadas à probabilidade de ocorrência em toda a população. Para considerar determinada categoria como característica descritora de um perfil, foi utilizada uma RLFM igual ou maior que 1,20 como ponto de corte, em consonância com outros estudos que aplicaram o método GoM 14,15,16.
Os indivíduos foram caracterizados quanto à predominância nos perfis (gik ≥ 0,75) ou não (gik < 0,75), para verificar a associação de fatores de risco relacionados ao estilo de vida com variáveis sociodemográficas (sexo, faixa etária, escolaridade, região, cor/raça, estado civil) e de autopercepção do estado de saúde. Foram utilizados o teste de associação qui-quadrado de Pearson e um modelo de regressão logística incondicional. Primeiramente, aplicou-se o teste qui-quadrado, e aquelas variáveis que se apresentaram estatisticamente significantes ao nível de 20% foram incluídas no modelo de regressão logística, sendo estimados os valores de razões de chance (odds ratio) e os seus respectivos intervalos de confiança. O nível de significância estatística considerado nas análises de regressões logísticas foi de 5% (p < 0,05).
Para as análises estatísticas, utilizou-se o software SPSS versão 20 (https://www.ibm.com/), considerando o delineamento amostral complexo da PNS 2013, a partir do módulo complex sample, com vistas a corrigir o efeito do desenho amostral.
Por fim, foram estimadas as prevalências de cada perfil extremo na população de estudo. As propriedades do modelo GoM permitem assumir que a média dos escore de pertinência de cada perfil seja um estimador dessa prevalência 8. Essa característica fundamenta-se no argumento de que, por exemplo, se os indivíduos tiverem escores muito baixos em um dado perfil, as características desse mesmo perfil não serão prevalentes nessa população, sendo a média dos escores uma medida que reflete a importância do perfil na população 15.
Resultados
Após estimação dos modelos GoM multidimensionais de fatores de risco relacionados ao estilo de vida, obtiveram-se os seguintes valores de AIC: K = 2 (AIC = 716843,08), K = 3 (AIC = 744986,23), K = 4 (AIC = 791143,87), K = 5 (AIC = 851582,35), K = 6 (AIC = 918132,25). Dessa forma, o menor valor do AIC foi o do modelo com dois perfis extremos, sendo este apontado como o mais ajustado e, possivelmente, o que possui uma maior robustez na estimação dos dois conjuntos de parâmetros (gik e λkjl). Ademais, o resultado com dois perfis apresentou maior plausibilidade quanto à sua interpretação teórica, segundo suas características descritoras.
A
Tabela 1 Frequências absoluta e marginal relativa, coeficientes lambdas (λkjl) e razão lambda frequência marginal (RLFM) das variáveis internas para cada perfil extremo de fatores de risco relacionados ao estilo de vida. Brasil, 2013.
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Segundo o ponto de corte estabelecido para a RLFM de 1,20, o perfil 1 ainda foi caracterizado por maior probabilidade de ser fisicamente ativo no lazer, assim como de ter excesso de peso
Já os indivíduos com pertencimento total ao perfil 2 apresentaram probabilidades superiores relativamente às observadas na população pelo consumo regular de feijão. Contudo, para todos os demais marcadores de alimentação (saudáveis e não saudáveis), as probabilidades de ocorrência observadas nesse perfil indicaram uma baixa qualidade alimentar e nutricional desses indivíduos, demarcada por maiores probabilidades do consumo não recomendado de frutas, legumes e verduras e do consumo não regular de peixes, como também maiores probabilidades do consumo regular de refrigerantes, doces e carnes com excesso de gordura. Outra característica que indica pior qualidade na alimentação dos indivíduos tipo puro do perfil 2 é a maior probabilidade de substituição regular de refeições por lanches, com taxa superior a 73% em relação à população total
Quanto aos outros indicadores de estilo de vida, os indivíduos tipo puro do perfil 2 tiveram maiores probabilidades do consumo abusivo de álcool, de serem fumantes atuais de algum produto do tabaco, de não serem fisicamente ativos no lazer e de serem classificados como eutróficos em relação ao IMC
Considerando as principais características descritoras, o perfil 1 e o perfil 2 foram respectivamente denominados “perfil saudável” e “perfil de risco”, em relação ao conjunto de indicadores multidimensionais de fatores de risco relacionados ao estilo de vida. A distribuição percentual da predominância dos indivíduos nos dois perfis, segundo as variáveis sociodemográficas e de autopercepção de saúde consideradas no estudo, encontra-se disposta na
Tabela 2 Distribuição percentual da predominância dos perfis de fatores de risco relacionados ao estilo de vida, odds ratios (OR) e intervalos de 95% de confiança (IC95%) do modelo de regressão logística múltipla. Brasil, 2013.
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O grupo de indivíduos com predominância no perfil saudável foi associado ao sexo feminino, com 60 anos ou mais de idade, residentes nas regiões Norte e Nordeste, em comparação com os residentes na Região Sul, de cor/raça branca, viúvos e casados, quando comparados aos solteiros, e com melhor autoavaliação do estado de saúde. A escolaridade apresentou associação diretamente proporcional com a predominância no perfil saudável, já que quanto maior o nível de escolaridade, maiores são as proporções de indivíduos com elevado grau de pertencimento ao perfil
Já os indivíduos com alto grau de pertinência ao perfil de risco foram associados ao sexo masculino, faixa etária de 30 a 59 anos, residentes nas regiões Sul, Sudeste e Centro-oeste, em comparação com os residentes na Região Norte. São solteiros, separados ou divorciados, quando comparados com os casados, e com pior autoavaliação do estado de saúde. A escolaridade apresentou associação inversa, pois quanto maior o nível de escolaridade, menor o percentual de indivíduos com alto grau de pertencimento ao perfil de risco. Não houve diferença estatisticamente significante da predominância no perfil de risco entre as categorias de cor/raça
Em relação à prevalência dos dois perfis na população, calculada a partir da média dos escores de pertinência de cada perfil, tem-se que o mais prevalente foi o saudável (61,6%). Contudo, na distribuição dos indivíduos, apenas 17% tiveram predominância no perfil saudável (gik entre 0,75 e 0,99), e 16,3% foram considerados indivíduos do tipo puro, com total pertinência ao perfil
Tabela 3 Distribuição dos graus de pertinência (gik) e prevalência ponderada dos perfis de fatores de risco relacionados a estilo de vida de indivíduos acima de 30 anos de idade. Brasil, 2013.
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Discussão
O presente estudo é pioneiro por utilizar um método robusto para resumir e melhor compreender informações complexas sobre fatores de risco para DCNT em um único indicador. Não foram encontrados estudos dessa natureza na literatura, o que dificulta a comparação dos achados. A partir de outra metodologia, um estudo que avaliou a aglomeração de comportamentos saudáveis em adultos (18 a 64 anos) residentes nas capitais brasileiras revelou que, em 2013, 28,8% apresentaram três ou mais comportamentos saudáveis, considerando o tabagismo, o consumo de álcool, a prática regular de atividade física e o consumo de frutas e hortaliças 17.
No presente estudo, os indivíduos tipos puros (gik = 1,00) do perfil saudável representaram apenas 16,3%. Entretanto, cabe ressaltar que, além de utilizar uma metodologia diferente, outras variáveis foram consideradas, principalmente quanto ao consumo alimentar, o que contribui com esse menor percentual.
O consumo alimentar humano é complexo e multidimensional, e a sua avaliação envolve a análise conjunta de nutrientes, tipos e grupos de alimentos, além de padrões alimentares, considerando ainda os princípios da proporcionalidade, variedade e moderação 18. Dessa forma, torna-se difícil predizer um consumo alimentar saudável a partir de uma única variável. A inclusão de um número maior de variáveis no modelo se deu devido à necessidade de contemplar os diversos aspectos do consumo alimentar, por meio do maior número possível de marcadores positivos e negativos de alimentação saudável.
Evidências científicas apontam que a adoção de comportamentos saudáveis de estilo de vida contribui com a redução da incidência de doenças cardiovasculares, determinados tipos de câncer, doenças respiratórias crônicas, diabetes, além de distúrbios mentais e comportamentais, o que se liga substancialmente à redução da mortalidade prematura 1,19,20.
Apesar de aparentemente contraditório, a maior probabilidade de consumo regular de feijão foi observada no perfil de risco, e o menor consumo se deu no perfil saudável. O padrão alimentar da população do nosso país vem sofrendo mudanças demarcadas, principalmente pela redução no consumo de alimentos básicos tradicionais da dieta típica do brasileiro, como o arroz e o feijão, e o aumento do consumo de alimentos ultraprocessados 21. Atrelado a isso, uma nova corrente de dietas da moda, consideradas saudáveis, vem encorajando o consumo de alimentos proteicos em detrimento de alimentos com maior quantidade de carboidratos 22, provavelmente por associar o elevado consumo de proteína com o aumento de massa magra e perda de peso.
Outro achado também paradoxal foi a maior probabilidade de indivíduos com excesso de peso pertencerem ao perfil saudável. Esses resultados podem ter sido influenciados pelo efeito da causalidade reversa existente em estudos transversais, uma vez que, por terem excesso de peso, esses indivíduos tenderiam a optar por hábitos mais saudáveis, com vistas a controlar o peso. Outra explicação plausível é a possibilidade de ter ocorrido um viés nos relatos dos comportamentos de estilo de vida por parte dos indivíduos com excesso de peso. A desejabilidade social e a falsidade intencional ocorrem quando os indivíduos tendem a relatar consumo de alimentos ou comportamentos propagados como saudáveis quando, na realidade, não se alinham com essas práticas 23.
As diferenças de gênero por cuidados de atenção à saúde já são bem discutidas na literatura, o que inclui a adoção de hábitos saudáveis 24,25. Distinção de papeis sociais e de autopercepção do estado de saúde e da imagem corporal justificam esses diferenciais. Por razões morais e estéticas, é socialmente mais aceitável uma maior atenção das mulheres aos comportamentos e cuidados com a saúde. Em contrapartida, essas práticas comprometem a imagem da virilidade associada aos homens 24.
Outros estudos também mostraram que a adoção de comportamentos saudáveis de estilo de vida varia segundo a faixa etária, sendo maior entre os indivíduos mais velhos 26,27. Diversos fatores podem refletir nessa adoção de hábitos mais saudáveis: maior consciência sobre a saúde e/ou preocupação devido ao surgimento de doenças 27; viés de sobrevivência, levando as pessoas com maiores exposições de risco ao longo da vida à mortalidade precoce; e efeito de coorte, tendo em vista que coortes diferentes têm hábitos diferentes 26.
O efeito de coorte assume um papel relevante na explicação das prevalências de fatores de risco entre as faixas etárias, principalmente nos casos relacionados à alimentação, se considerarmos que os atuais idosos construíram seus hábitos alimentares em um período anterior à atual fase da transição alimentar e nutricional. Desde a década de 1980, a dominação da indústria alimentícia por multinacionais modificou os padrões alimentares dos brasileiros, aumentando, principalmente, a produção e o consumo de alimentos ultraprocessados 28. Essas mudanças geraram impactos negativos na qualidade da alimentação da população, refletidos no aumento da densidade energética da dieta e dos teores de açúcar, das gorduras saturadas e trans e, ainda, na diminuição dos teores de fibras e de potássio 29.
Quanto ao diferencial geográfico nos perfis de estilo de vida, a análise da adequação isolada dos comportamentos saudáveis auxilia na compreensão dos resultados encontrados. Embora a prevalência do consumo de feijão seja menor na Região Norte, e o Nordeste apresente menores prevalências no consumo de frutas e hortaliças, para todos os demais de fatores de risco para DCNT, as regiões Sul e Centro-oeste lideram as piores posições. O Sul tem o maior percentual de fumantes e de pessoas que não praticam atividade física no lazer, ao passo que o Centro-oeste apresenta o maior consumo de carnes com excesso de gordura, refrigerantes e bebidas alcoólicas 30.
O estado civil tem sido mencionado como fator associado a comportamentos relacionados à saúde 31,32. Acredita-se que o suporte social das relações conjugais tende a favorecer um estilo de vida mais saudável. Contudo, a idade também pode influenciar os resultados encontrados no presente estudo, tendo em vista que há uma tendência de os solteiros serem mais jovens, assim como de os viúvos e os casados serem mais velhos. Ademais, como já discutido anteriormente, a faixa etária e o estilo de vida são variáveis associadas. Outros estudos brasileiros não encontraram associação do estado marital com comportamentos saudáveis 27,33.
A associação entre fatores de risco relacionados ao estilo de vida e a autopercepção do estado de saúde já foi identificada em trabalhos nacionais e internacionais 34,35,36,37. Esses achados sinalizam que as pessoas já reconhecem os benefícios da adoção de um estilo de vida saudável para a sua saúde e bem-estar, mesmo que esses comportamentos ainda não sejam predominantes na população brasileira.
Corroborando outros trabalhos 17,26,38, os achados do presente estudo confirmam a hipótese da determinação social relacionada aos comportamentos de saúde, em que a escolaridade elevada estaria associada a um estilo de vida mais saudável. Maior escolaridade está associada a maior renda, ascensão ocupacional, prestígio social e vivência em contextos sociais e de vizinhança mais acessíveis à prática de atividades físicas e à compra de alimentos saudáveis 39.
Diversos problemas do Brasil advêm de uma educação deficitária, historicamente demarcada por fortes desigualdades no acesso ao sistema escolar, na exclusão dentro do próprio sistema ou nos diferentes padrões de qualidade educacional 40. Fatores histórico-culturais, sociais, forças macroestruturais e políticas, além das condições da oferta de ensino (infraestrutura dos prédios escolares, formação e atuação de professores, duração da jornada discente) e fatores econômicos (impacto da educação no mercado de trabalho e na mobilidade social dos indivíduos) estão associados às desigualdades educacionais e à apropriação dos resultados educacionais entre as pessoas de diferentes níveis socioeconômicos, em geral, em desfavor das classes mais desfavorecidas 41.
Ainda nessa perspectiva, além da necessidade de políticas que promovam acesso mais igualitário à educação, com consequente redução da desigualdade em nossa sociedade, o enfrentamento da situação encontrada no presente estudo, ou seja, do baixo percentual de indivíduos com pertencimento total ao perfil saudável de fatores de risco relacionados ao estilo de vida, está atrelado também a políticas reguladoras da própria atividade econômica.
Mais do que incentivar mudanças comportamentais individuais, o Estado deve prover um ambiente favorável para essas mudanças, seja mediante políticas que garantam acesso e infraestrutura adequada, seja por meio de medidas regulatórias que visem a controlar a produção, a propaganda e a comercialização de alimentos ultraprocessados e de bebidas alcoólicas, além de reduzir demandas por meio de mecanismos de tributações e preços 42,43.
Assim como ocorreu exitosamente com o uso do tabaco, a despeito das pressões da indústria de alimentos e bebidas, faz-se necessário desenvolver as ainda incipientes políticas desse setor, tendo em vista que os custos sociais e de saúde envolvidos com fatores de risco são muito maiores do que os lucros auferidos em sua venda, incluindo os empregos gerados, os impostos arrecadados e o desenvolvimento econômico resultante 42.
Embora o presente estudo seja um avanço, no sentido de identificar prevalências e características de perfis de fatores de risco relacionados ao estilo de vida, considerando a possibilidade de pertencimento parcial dos indivíduos nestes perfis, algumas limitações devem ser pontuadas. Por se tratar de um estudo de natureza transversal, as associações encontradas não sugerem relações de causalidade. Além disso, como todas as informações foram autorreferidas, deve-se sempre considerar a existência de vieses de memória ou a tendenciosidade nos depoimentos por comportamentos desejáveis.
O estudo dos fatores de risco relacionados ao estilo de vida é de grande relevância para o monitoramento e o controle da morbimortalidade por DCNT. Para desenvolvimento futuro, sugere-se a utilização desse indicador multidimensional em estudos que possam estimar, não apenas pontualmente, mas ao longo da vida, os impactos acumulados de um estilo de vida não saudável para a qualidade de vida, principalmente ao considerar as limitações e as incapacidades decorrentes das DCNT.
As estimativas encontradas no presente estudo revelaram que, embora menos prevalente, o perfil de risco ainda apresenta elevado percentual na população brasileira. Aliado a isso, mesmo sendo mais prevalente, apenas 16,3% dos indivíduos têm pertencimento total ao perfil saudável. Esses resultados reforçam a necessidade de políticas que promovam o acesso e a regulação de comportamentos e modos de vida saudáveis, principalmente considerando os aspectos sociodemográficos associados ao processo de adoção de estilos de vida saudáveis. É urgente que os interesses da Saúde Pública sobrepujam os princípios e valores comerciais no Brasil.
Agradecimentos
Ao Ministério da Saúde e ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística pela disponibilização dos microdados da Pesquisa Nacional de Saúde.
Referências
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