Cadernos de Saúde Pública
ISSN 1678-4464
38 nº.2
Rio de Janeiro, Fevereiro 2022
ARTIGO
Fatores associados ao desenvolvimento infantil em crianças brasileiras: linha de base da avaliação do impacto do Programa Criança Feliz
Tiago N. Munhoz, Iná S. Santos, Cauane Blumenberg, Raquel Siqueira Barcelos, Caroline C. Bortolotto, Alicia Matijasevich, Hernane G. Santos Júnior, Letícia Marques dos Santos, Luciano L. Correa, Marta Rovery de Souza, Pedro I. C. Lira, Elisa Rachel Pisani Altafim, Esmeralda Correa Macana, Cesar G. Victora
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311X00316920
Desenvolvimento Infantil; Determinantes Sociais da Saúde; Deficiências do Desenvolvimento; Depressão; Transtornos Globais do Desenvolvimento Infantil
Introdução
O desenvolvimento infantil abrange uma série de capacidades e habilidades inter-relacionadas e interdependentes. As principais características nesta perspectiva incluem a linguagem (expressiva e receptiva), as habilidades motoras (amplas e finas), capacidades cognitivas e aspectos socioemocionais da criança 1. Quando as condições socioeconômicas, nutricionais, de estimulação cognitiva, cuidados na primeira infância e de saúde infantil e materna são adequadas para o desenvolvimento da criança, estas capacidades e habilidades tendem a se manifestar de forma similar em diferentes contextos socioculturais 2,3. O estudo Fetal Growth Longitudinal Study do Projeto INTERGROWTH-21st forneceu evidências de que, em populações saudáveis, isto é, com adequada saúde, nutrição e escolaridade maternas, o crescimento e desenvolvimento do encéfalo durante o período gestacional foi similar nos diferentes países (Brasil, Índia, Itália, Quênia e Reino Unido) 4. Análises do mesmo estudo indicaram que, em crianças de famílias com condições socioeconômicas, ambientais e assistenciais adequadas, o crescimento e neurodesenvolvimento até os dois anos de idade foram também similares nesses países 3.
Existe um conjunto de evidências sobre fatores de risco contextuais individuais/biológicos e/ou psicossociais precoces associados aos déficits ou atrasos no desenvolvimento infantil 5,6. Recentemente, a Organização Mundial da Saúde (OMS) propôs um modelo dos determinantes relacionados a nutrição e cuidados para adequado desenvolvimento, desde a preconcepção até a adolescência 6. O déficit nutricional de ácido fólico materno, durante o período preconcepcional, está associado à ocorrência de má formação do tubo neural 7 e, consequentemente, a prejuízo no adequado desenvolvimento do sistema nervoso fetal. Durante o período gestacional, a inadequada nutrição materna pode determinar problemas no desenvolvimento e de saúde ao longo do ciclo vital 8,9. Há evidência de que crianças nascidas prematuramente ou pequenas para a idade gestacional (PIG) também apresentam maior risco para atraso no desenvolvimento 6. Nos últimos anos, há crescente evidência da importância de fatores psicossociais sobre o desenvolvimento infantil 10. A qualidade do cuidado direcionado à criança, por meio de práticas parentais responsivas, afetivas e não punitivas, é importante para o adequado desenvolvimento infantil e capital humano 6,10.
Uma revisão sistemática da literatura identificou que filhos de mães com baixa escolaridade e expostos a condições precárias de saneamento apresentaram piores escores de desenvolvimento cognitivo e motor, em comparação a seus pares, nascidos em famílias com melhores condições socioeconômicas 11. Da mesma forma, crianças nascidas pré-termo apresentam maior risco para problemas de desenvolvimento quando comparadas àquelas nascidas a termo 11, e déficits de comprimento para a idade, nos primeiros dois anos de vida, estão associados ao pior desenvolvimento cognitivo na infância e pré-adolescência 12.
Neste contexto, procurou-se avaliar os fatores socioeconômicos, familiares e individuais associados ao desenvolvimento infantil (linguagem, coordenação motora ampla/fina, pessoal-social e resolução de problemas) durante o primeiro ano de vida de crianças brasileiras em situação de vulnerabilidade social.
Métodos
Desenho do estudo
Trata-se de uma análise transversal com dados da linha de base do estudo Avaliação do Impacto do Programa Criança Feliz13.
Participantes
Participaram do estudo as mães (± 99% das respondentes) ou cuidadores/responsáveis por crianças menores de 12 meses de idade, beneficiárias do Programa Bolsa Família e elegíveis para o Programa Criança Feliz. Estas mães residiam em 30 municípios brasileiros (média de 109 famílias por município), distribuídos em seis estados da Federação. Em cada estado, foram selecionados entre três e seis municípios.
Amostragem
A escolha de estados e municípios foi intencional, tendo como base a implementação do Programa Criança Feliz. A amostra foi selecionada a partir da identificação de crianças elegíveis para o Programa Criança Feliz residentes na zona urbana do município. Após aceite em participar do estudo, uma planilha com a lista de crianças elegíveis em cada município foi elaborada e com base nesta planilha foram sorteadas as crianças em cada grupo. O cálculo do tamanho da amostra considerou erro alfa bicaudal de 5%, erro beta de 10%, adesão ao programa de 60% e acréscimo de 20% para perdas e recusas. Desta forma, seriam necessárias, em média, 96 crianças por município, totalizando 2.880 crianças no país. Foram incluídos estados de todas as regiões do país, exceto da Região Sul, onde a clientela do Bolsa Família é reduzida. A Região Sul não pode ser incorporada ao estudo por apresentar poucos municípios com o número de crianças elegíveis para o programa, assim como pela existência, nos estados que a compõem, de programas similares ao Programa Criança Feliz, o que dificultaria a obtenção de um grupo controle. Com base nos dados do Cadastro Único 14, foram selecionados municípios que atendessem aos seguintes critérios: aqueles que tinham aderido ao Programa Criança Feliz em 2016; população urbana ≥ 10 mil habitantes; número de crianças ≤ 12 meses de idade quatro vezes superior à capacidade instalada do Programa Criança Feliz (visitas semanais a pelo menos 80 crianças e suas famílias); e população maior ou igual a 800 crianças ≤ 12 meses beneficiárias do Programa Bolsa Família. No estudo de avaliação do impacto, a randomização das famílias para os grupos intervenção e controle foi realizada após a coleta de dados da linha de base. A análise atual utilizou dados de toda amostra com informações disponíveis na linha de base, isto é, antes que as crianças do grupo intervenção fossem incluídas no Programa Criança Feliz. Maiores detalhes sobre o processo de amostragem estão disponíveis em publicação anterior 13.
Coleta de dados
Em cada estado, equipes de pesquisa visitaram os domicílios das famílias selecionadas. Os questionários foram aplicados nos domicílios às mães ou responsáveis por entrevistadoras treinadas para aplicação padronizada do instrumento.
Avaliação do desenvolvimento infantil
O principal desfecho deste estudo foi a avaliação do desenvolvimento infantil, por meio do Ages and Stages Questionnaire (ASQ-3) 15,16,17. O ASQ-3 é um instrumento válido e confiável de avaliação e monitoramento do desenvolvimento da cognição (resolução de problemas), comunicação, desenvolvimento psicomotor (coordenação ampla e fina) e social-pessoal de crianças entre 0 e 6 anos 15,16,17. No Brasil, o estudo de validação psicométrica incluiu ± 45 mil crianças das diferentes faixas etárias. Nas crianças < 14 meses, a consistência interna (alfa de Cronbach) variou de 0,67-0,75 para o domínio de comunicação, de 0,71-0,85 para coordenação motora ampla, 0,77-0,79 para coordenação motora fina, 0,72-0,79 para resolução de problemas e 0,58-0,76 para o domínio pessoal-social 15. Análises Rasch, seguindo o modelo da Teoria de Resposta ao Item, indicaram que < 10% dos itens avaliados apresentaram algum problema de ajuste entre os 540 itens avaliados nas diferentes faixas etárias 15.
Para avaliação de crianças no primeiro ano de vida, o ASQ-3 é composto por seis questionários, aplicados às faixas etárias de 2, 4, 6, 8, 10 e 12 meses. Cada questionário avalia crianças de ±1 mês em relação à idade a que se destina. Por exemplo, o questionário de 2 meses inclui crianças com idade de 1 mês e 0 dias até 2 meses e 30 dias. Na aplicação do ASQ-3 em crianças prematuras, seleciona-se o questionário apropriado à faixa etária, ajustando para a prematuridade. O instrumento avalia os marcos do desenvolvimento (cognição, comunicação, psicomotor e social-pessoal) de acordo com a faixa etária da criança, com itens ordenados de mais simples a mais complexos. O domínio de comunicação avalia, entre outras coisas, a produção de sons, palavras e expressão facial. A coordenação motora ampla avalia o controle motor dos membros superiores e inferiores, controle do tronco, equilíbrio etc. A coordenação motora fina é avaliada por questões sobre segurar e agarrar objetos e interação com objetos (brinquedos, pessoas etc.). O domínio sobre “resolução de problemas” avalia o contato visual (seguir objetos visualmente) e interação com o ambiente (busca estímulos). As perguntas sobre a área “pessoal/social” incluem a resposta a reflexos, sorriso social, controle de objetos para alimentação e interação com cuidadores.
Cada domínio do ASQ-3 é composto por seis questões. Cada questão possui três opções de resposta, que indicam o alcance de cada habilidade pela criança (0 pontos = ainda não; 5 pontos = às vezes e 10 pontos = sim). O somatório das respostas compõe o escore de cada domínio considerando a faixa etária da criança. O somatório de todos os domínios foi analisado como escore total do ASQ-3. O tempo médio de aplicação do ASQ-3 foi de 10 minutos.
Fatores de risco investigados
Características da família
(1) Número de crianças menores de sete anos residentes no domicílio (1, 2, 3 ou mais);
(2) Idade paterna em anos (< 20, 20-29, 30-39, 40-49, 50-59, ≥ 60).
Características sobre a mãe/cuidador principal da criança
(1) Idade em anos (< 15, 15-19, 20-24, 25-29, 30-34, 35-39 e ≥ 40);
(2) Cor/raça autodeclarada, de acordo com a classificação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (categorizada em branca, parda, preta e outras);
(3) Escolaridade em anos completos (0-4, 5-8 e ≥ 9);
(4) Residir com marido/companheiro (sim/não);
(5) Trabalho fora de casa (não, alguns dias, todos os dias);
(6) Sintomas depressivos maternos (sim/não), avaliados pela Escala de Depressão de Edimburgo (Edinburgh Postnatal Depression Scale - EPDS), aplicada verbalmente pela entrevistadora seguindo a ordem das perguntas do instrumento. A EPDS é validada para a população brasileira, tanto em mulheres no período pós-parto 18 quanto para uso na população geral 19 e avalia os sintomas referentes aos sete dias anteriores à entrevista. Utilizou-se o ponto de corte ≥ 10 para definição de presença sintomas de depressão - sensibilidade de 82,7% (intervalo de 95% de confiança - IC95%: 7,0-89,4) e especificidade de 65,3% (IC95%: 59,4-71,0) 18.
Características do pré-natal e gestação
(1) Número de consultas pré-natal (categorizado em 0-5 ou ≥ 6);
(2) Trimestre de início das consultas pré-natais (primeiro, segundo ou terceiro);
(3) Planejamento da gravidez (sim/não);
(4) Autopercepção de apoio/ajuda do pai criança (sim/não);
(5) Autopercepção de apoio/ajuda da família durante a gravidez (sim/não);
(6) Crescimento intrauterino: crianças nascidas com peso abaixo do percentil 10 para o sexo e idade gestacional, conforme a curva padrão definida pelo Projeto INTERGROWTH-21st 20, foram consideradas com restrição do crescimento intrauterino (RCIU) (pequenas para a idade gestacional - PIG). Conforme o crescimento intrauterino, as crianças foram classificadas como “a termo (≥ 37 semanas de idade gestacional) com peso adequado para idade gestacional (AIG)”, “pré-termo (< 37 semanas) com peso AIG”, “a termo PIG” e “pré-termo PIG” 20,21.
Treinamento e coleta de dados
Os entrevistadores foram treinados por 40 horas por meio de apresentação do instrumento, role plays e instruções para solução de problemas de campo. A coleta de dados ocorreu entre agosto de 2018 e julho de 2019, por meio de tablets, em formato eletrônico, utilizando-se a plataforma REDCap 22. Em cada estado, a coleta de dados ocorreu de forma independente, seguindo o protocolo do estudo, o qual, juntamente com os instrumentos utilizados na pesquisa, estão disponíveis online13.
Análises estatísticas
Todas as análises foram realizadas utilizando modelo multinível, no Stata software, versão 13.1 (https://www.stata.com), considerando três níveis: estados, municípios e características familiares e da criança. Os coeficientes de correlação intraclasse e erros-padrão foram estimados conforme características socioeconômicas, familiares e individuais. Pela análise descritiva e univariada, foram obtidas as frequências absolutas/relativas ou a média das variáveis, com IC95%. A análise multivariada foi realizada utilizando-se duas abordagens: um modelo mínimo, definido com o auxílio de um directed acyclic graph (DAG;
Figura 1 Diagrama causal (directed acyclic graph - DAG) para associação entre determinantes e desenvolvimento infantil (ASQ-3). Programa Criança Feliz, Brasil, 2018.
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O teste de Wald para heterogeneidade e tendência linear foi usado para avaliar as associações. Valores de p inferiores a 0,05 foram considerados estatisticamente significantes.
Aspectos éticos
O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pelotas (parecer nº 2.148.689). O ensaio randomizado está registrado no site do Registro Brasileiro de Ensaios Clínicos (ReBEC; https://ensaiosclinicos.gov.br/), sob o identificador RBR-4x7dny.
Resultados
Foram analisadas informações de 3.061 crianças (94% da amostra original), com informações completas para o ASQ-3. Foram excluídas aquelas cujas mães relataram a presença de alguma deficiência (n = 35).
A
Tabela 1 Descrição da amostra (N = 3.061) conforme características socioeconômicas, familiares e individuais. Programa Criança Feliz, Brasil, 2018.
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A
Tabela 2 Análise multinível não ajustada, médias, intervalo de 95% de confiança (IC95%) do ASQ-3 (total e por domínio) segundo fatores socioeconômicos, familiares e individuais. Programa Criança Feliz, Brasil, 2018.
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Tabela 3 Regressão multinível linear bruta, ajustada conforme DAG (directed acyclic graph) e modelo hierarquizado conceitual de análise. Programa Criança Feliz, Brasil, 2018.
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Tanto a análise com base no DAG, quanto a análise pelo modelo conceitual indicaram associação do escore total do ASQ-3 com escolaridade materna, apoio do pai da criança durante a gestação, crescimento intrauterino, número de crianças < 7 anos e sintomas depressivos maternos. De maneira geral, em ambos os modelos, os filhos de mães com baixa escolaridade (0-4 anos) e com sintomas de depressão apresentaram, em média, uma redução de aproximadamente 10 pontos no escore total do ASQ-3. Além disso, a maior redução na média do ASQ-3 total, de aproximadamente 40 pontos (IC95%: -58,8; -19,6) foi observada entre as crianças nascidas pré-termo PIG. As pertencentes a famílias com duas ou mais crianças < 7 anos e aquelas cujas mães não receberam apoio do pai da criança durante a gestação apresentaram uma redução aproximada de 5 pontos no escore total médio do ASQ-3
Os coeficientes de correlação intraclasse (ICC) foram apresentados no Material Suplementar (http://cadernos.ensp.fiocruz.br/static//arquivo/suppl-e00316920_9874.pdf). O ICC relata duas correlações intraclasse para este modelo aninhado de três níveis. A primeira coluna (estado) apresenta a correlação intraclasse do nível estadual, isto é, a correlação entre os escores de desenvolvimento no mesmo estado. A segunda coluna (município) apresenta a correlação intraclasse ao nível de município dentro do estado, ou seja, a correlação entre escores de desenvolvimento no mesmo município e estado. Condicionalmente às covariáveis de efeitos fixos, os escores de desenvolvimento apresentaram baixa correlação dentro do mesmo estado (< 1%), sendo ligeiramente maior dentro do mesmo município e estado (±1%). Desta forma, os efeitos aleatórios do município e estado representaram cerca de 1% da variância residual total em todas as características socioeconômicas, familiares e individuais analisadas.
Discussão
Os escores de desenvolvimento infantil (total e por domínios) no primeiro ano de vida foram consistentemente menores em filhos de mães com baixa escolaridade, com sintomas de depressão, que não tiveram apoio do pai da criança durante a gestação e com duas ou mais crianças menores de sete anos residindo no domicílio. Prematuridade com RCIU associou-se a menores escores de desenvolvimento para comunicação, coordenação motora ampla e fina, resolução de problemas e pessoal-social.
A associação entre baixa escolaridade materna e redução nos escores de desenvolvimento infantil identificadas neste estudo também foram observadas em outros contextos socioculturais. Uma recente revisão sistemática analisou dados de 21 países de baixa e média renda, incluindo estudos brasileiros, e reportou que a baixa escolaridade materna e paterna, falta de acesso a água potável e saneamento básico, prematuridade, baixo peso ao nascer, baixa estatura materna e anemia na infância associaram-se a menores escores de desenvolvimento em crianças menores de sete anos 11. Por outro lado, a mesma revisão mostrou que a RCIU, duração da amamentação exclusiva, anemia materna e diarreia na criança não apresentavam associação com o desenvolvimento infantil 11. Assim como observado neste estudo, estimativas agrupadas em estudos de metanálise identificaram relação positiva, com gradiente dose-resposta, entre escolaridade dos pais e escores de desenvolvimento infantil 11. Nilsen et al. 25 realizaram uma metanálise que avaliou dados de 185 estudos. Foram analisados mais de 100 fatores estressores maternos e seus efeitos sobre as habilidades cognitivas em crianças e adolescentes menores de 18 anos. Os estressores socioeconômicos, entre eles a baixa escolaridade materna, foram responsáveis por 13% e 18% do atraso de desenvolvimento de habilidades cognitivas em crianças e adolescentes, respectivamente 25. A literatura sobre os efeitos da escolaridade materna na saúde infantil 26,27,28,29 explica esta associação a partir de mecanismos indiretos, relacionados às inequidades em saúde. Desta forma, grupos populacionais de menor escolaridade e renda têm dificuldades ao acesso e pior qualidade ao cuidado pré-natal, acesso reduzido a condições sanitárias adequadas e menores intervalos interpartais, 30 em comparação com aqueles de maior escolaridade. Há evidências de que as práticas de estimulação cognitiva e cuidado responsivo sejam mais frequentes entre as mães/cuidadores mais escolarizados, em comparação a grupos com menor escolaridade 11. Maior escolaridade materna está associada a melhor nutrição materno-infantil 27,30, acesso aos serviços de saúde e maior cobertura vacinal. Dados relacionados a população geral no Brasil, de acordo com a Pesquisa Nacional de Saúde, indicam que dois terços dos indivíduos (67,1%) sem escolaridade ou com nível fundamental incompleto tiveram acesso a consulta médica no ano anterior à pesquisa, enquanto esse percentual foi de 81% dos indivíduos com nível superior completo 31. Assim, uma série de mecanismos contextuais e individuais podem explicar a associação entre escolaridade e desenvolvimento infantil. Portanto, estas evidências sugerem que a oferta de ensino formal à população deve estar interrelacionada com políticas e programas da área da saúde.
Os transtornos depressivos são considerados a terceira principal causa de incapacidade no mundo, especialmente entre as mulheres 32. Há consenso na literatura mundial de que a depressão afeta as mulheres cerca de duas vezes mais do que os homens e que a etiologia do transtorno é multifatorial, com múltiplas combinações e interações entre fatores de risco 33. A depressão materna tem impacto negativo em diferentes aspectos do neurodesenvolvimento e saúde mental de crianças e adolescentes 34,35,36,37,38. Liu et al. 39 conduziram metanálise de 17 estudos para avaliar os efeitos de sintomas depressivos maternos no desenvolvimento cognitivo de crianças menores de sete anos. Sintomas depressivos maternos foram associados a redução de 0,25 desvios padrão (DP) nos escores de desenvolvimento cognitivo dos filhos. Outra revisão sistemática incluiu 73 estudos que avaliaram as consequências da depressão materna no desenvolvimento da linguagem, motor e cognitivo, além de aspectos socioemocionais e de saúde mental das crianças. Quatro em cada 10 estudos reportaram que filhos de mães deprimidas apresentavam menores escores de desenvolvimento motor e de linguagem; dois terços dos estudos identificaram atrasos no desenvolvimento cognitivo em crianças cujas mães eram deprimidas; e 8 em cada 10 estudos reportaram problemas de comportamento e saúde mental como consequências da depressão materna na saúde e desenvolvimento dos filhos 35. Fatores como baixo nível socioeconômico, menor escolaridade, restrição ao acesso a serviços de saúde e falta de suporte social estão associados a maior ocorrência de depressão em diferentes países do mundo 40. Além destes fatores, uma explicação plausível para os efeitos da depressão materna no desenvolvimento infantil refere-se aos prejuízos decorrentes da presença do transtorno nas relações e interações familiares, sociais e de trabalho do indivíduo. Há evidências de que mães deprimidas apresentariam pior qualidade e menor quantidade de estímulos sensoriais, cognitivos e afetivos direcionados à criança, em comparação às mães não deprimidas 41. As práticas parentais (entendidas estratégias e técnicas utilizadas pelos pais e/ou cuidadores para cuidar, educar e possibilitar que os filhos se desenvolvam) tendem a ser mais punitivas e menos afetivas e responsivas nas mães que estão deprimidas 42. Estudos com filhos de mães deprimidas mostraram padrões de atividade cerebral (registrada em eletroencefalograma) semelhantes aos encontrados em adultos com depressão 43, sendo este efeito ainda maior para aquelas crianças que passavam ao menos 50% do tempo sob cuidados das mães com transtorno depressivo 44. A atividade cerebral em pessoas deprimidas é reduzida e, portanto, a exposição a experiências adversas (como depressão materna) nos primeiros anos de vida pode contribuir para a subespecificação e conexão incorreta dos circuitos cerebrais 45.
Este estudo observou menores escores de desenvolvimento infantil entre crianças nascidas prematuramente e com restrição do crescimento intrauterino. Este resultado também foi observado na metanálise conduzida por Sania et al. 11, citada anteriormente. Os escores padronizados para desenvolvimento cognitivo e motor foram: DP = 0,14 (IC95%: -0,24; -0,05) e DP = 0,23 (IC95%: -0,42; -0,03) menores em crianças pré-termo e AIG, em comparação aquelas nascidas a termo e AIG 11. Crianças nascidas pré-termo e PIG também apresentaram uma redução no escore padronizado de desenvolvimento cognitivo (-0,17; IC95%: -0.29; -0.05). Não foram observadas associações entre prematuridade ou RCIU em relação ao desenvolvimento da linguagem 11. Cabe destacar que outra metanálise, que avaliou resultados de 68 estudos, realizados em 29 países de renda baixa e média, reportou redução nos escores agrupados padronizados e ajustados de desenvolvimento cognitivo e motor em crianças menores de dois anos com déficits de altura para idade 12. Esta possível associação não foi avaliada neste estudo. Destaca-se que o ASQ-3 é ajustado para prematuridade antes da aplicação do instrumento. Desta forma, é plausível supor que o efeito da prematuridade/RCIU não tenha sido superestimado na atual análise. Um ponto forte deste estudo é, além da contribuição para a investigação dos determinantes do desenvolvimento infantil, a mensuração de diferentes aspectos do desenvolvimento. Soma-se a isso o perfil da amostra, composta por famílias em situação de vulnerabilidade social, em trinta municípios, de diferentes regiões do país. A mensuração do desenvolvimento na primeira infância tem sido apontada como um grande desafio para diferentes países do mundo, devido à multiplicidade de instrumentos de avaliação e restrições inerentes a diferentes instrumentos (nível individual vs. nível populacional, por exemplo) 46. O instrumento ASQ-3 avalia os domínios predominantemente empregados na literatura internacional (cognitivo, comunicação e motor) 46, tem sido utilizado em diferentes estudos populacionais 47 e apresenta boas propriedades para rastreamento do desenvolvimento na primeira infância 46,47. O teste pode ser aplicado por entrevistadores com escolaridade de segundo grau ou superior, sem a necessidade de formação específica em Psicologia. A robustez dos resultados obtidos e a identificação de fatores de risco compatíveis com a literatura internacional sugerem que o teste foi aplicado de forma adequada em contexto de entrevistas domiciliares.
A legislação do Marco Legal da Primeira Infância 48 estabelece que as políticas públicas deverão monitorar, coletar dados e avaliar periodicamente os elementos que constituem a oferta dos serviços à criança. Assim, a avaliação do desenvolvimento da criança com instrumentos adequados torna-se fundamental para atingir esse objetivo. Este estudo pode ser considerado como um modelo de avaliação do desenvolvimento da criança a ser seguido por políticas públicas. Conhecer as relações entre as características socioeconômicas, familiares e da criança associados ao desenvolvimento infantil, de populações participantes de programas de políticas públicas, poderá auxiliar os gestores na identificação de fatores risco e de proteção para subsidiar as intervenções.
Os resultados destacam a importância dos determinantes socioeconômicos (escolaridade materna), da saúde mental materna e do crescimento intrauterino no desenvolvimento das crianças durante o primeiro ano de vida. Além de fornecerem evidências para as políticas públicas na primeira infância, os resultados reforçam a importância dos determinantes sociais em saúde, uma vez que os determinantes com maior impacto na redução do escore de desenvolvimento, em todos os domínios avaliados (baixa escolaridade e depressão maternas e RCIU), são potencialmente modificáveis. Intervenções em nível individual e populacional necessitam focar nestes grupos para minimizar os impactos adversos destes determinantes no adequado desenvolvimento infantil. A adequação, ampliação e oferta de políticas públicas no setor saúde, educação e proteção social são fundamentais para redução de diferentes desfechos em saúde, incluindo o desenvolvimento infantil.
Agradecimentos
Este artigo foi realizado com dados do estudo Avaliação de Impacto do Programa Criança Feliz, conduzido pelo Programa de Pós-graduação em Epidemiologia da Universidade Federal de Pelotas, em parceria com o Instituto de Humanidades, Artes & Ciências Professor Milton Santos (Bahia), Universidade Federal do ABC Paulista, Universidade Federal do Ceará, Universidade Federal de Goiás, Universidade Federal do Oeste do Pará, Universidade Federal de Pernambuco e Universidade de São Paulo, com o apoio do Ministério da Cidadania e do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Estudo foi financiado pela Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal (FMCSV), Itaú Social, Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e Ministério da Cidadania. I. S. Santos, A. Matijasevich, P. I. C. Lira e C. G. Victora recebem bolsa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. C. C. Bortolotto recebeu bolsa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (código 001).
Referências
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