Cadernos de Saúde Pública
ISSN 1678-4464
36 nº.10
Rio de Janeiro, Outubro 2020
REVISÃO
Segurança do paciente no cuidado odontológico: revisão integrativa
Claudia Dolores Trierweiler Sampaio de Oliveira Corrêa, Paulo Sousa, Claudia Tartaglia Reis
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311X00197819
Segurança do Paciente; Odontologia; Qualidade dos Cuidados de Saúde; Eventos Adversos
Introdução
A segurança do paciente é definida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como a “redução do risco de danos desnecessários relacionados aos cuidados de saúde para um mínimo aceitável” 1 (p. 21). Tem como foco a prevenção de eventos adversos (EA), definidos como os danos ao paciente decorrentes do cuidado de saúde e não da doença de base 1.
A associação da temática à qualidade do cuidado é antiga 2. Porém, somente a partir das publicações To Err is Human: Building a Safer Health System3 e Crossing the Quality Chasm: A New Health System for the 21st Century4 pelo Instituto de Medicina dos Estados Unidos, a magnitude do problema e suas consequências clínicas, econômicas e sociais ficaram expostas de uma forma mais evidente, sublinhando a grande distância entre a qualidade prometida daquela que efetivamente se concretizava.
Desde então, sob a liderança de organizações internacionais com particular destaque para a OMS, a segurança do paciente vem tomando corpo de conhecimento científico próprio 5. Os estudos são crescentes e têm sido fundamentais para: (i) produzir conhecimento na área; (ii) disseminar informação; (iii) apoiar as tomadas de decisão; (iv) promover práticas baseadas em evidências; (v) monitorar e avaliar o impacto de medidas que visam a aumentar a segurança dos pacientes e melhorar a qualidade dos cuidados prestados 6.
A maior parte dos estudos tem se desenvolvido no ambiente hospitalar, provavelmente em função de sua complexidade organizacional, gravidade dos casos, diversidade e especificidade de procedimentos 7. Embora a atuação dos cirurgiões-dentistas seja majoritariamente ambulatorial, a prestação dos cuidados odontológicos é potencialmente propícia à ocorrência de EA. A prática é eminentemente invasiva, implica contato íntimo e rotineiro com secreções como saliva e sangue 8, depende da habilidade do profissional e está em constante sujeição às possíveis emergências médicas 9,10.
Aliado a isso, o grande avanço tecnológico das últimas décadas, se por um lado propiciou maior agilidade e precisão aos diagnósticos e tratamentos 11, por outro, agregou maior complexidade ao atendimento e, por conseguinte, ao aumento do risco para a ocorrência de EA odontológicos 12.
Com base nesse cenário, o objetivo deste artigo foi identificar e explorar os estudos voltados à segurança do paciente odontológico. Conhecer os conteúdos discutidos nessas publicações é fundamental para destacar possíveis contribuições à prática e encontrar pontos de partidas passíveis de continuidade, imprescindíveis à compreensão do problema e à busca por melhorias da qualidade do cuidado e segurança do paciente nesse âmbito.
Método
Tratou-se de uma revisão integrativa da literatura norteada pela seguinte pergunta: “Como vem se desenvolvendo a pesquisa no campo da segurança do paciente odontológico e que contribuições os estudos apresentaram para a segurança do cuidado?”. Para responder à questão foram realizadas buscas na base de dados MEDLINE via PubMed, Portal Regional da Biblioteca Virtual de Saúde (BVS Regional) e Scopus via Portal Capes, por estas reunirem a maior parte das publicações voltadas à área da saúde. Utilizou-se os termos do MeSH (Medical Subject Headings; https://www.ncbi.nlm.nih.gov/mesh/) na língua inglesa: patient safety e dentistry em títulos e resumos
Quadro 1 Estratégia de busca.
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Foram estabelecidos como critérios de inclusão os artigos científicos nos idiomas inglês, espanhol e português, por conveniência dos autores e por representarem a grande maioria de publicações nessa área; que privilegiaram a segurança do paciente odontológico incluindo metodologias quantitativas, qualitativas, avaliativas, de intervenção, de reflexão, de análise documental e de revisão da literatura; o período de abrangência compreendeu entre 1º de janeiro de 2000 - ano da publicação do relatório To Err is Human: Building a Safer Health System - e 30 de junho de 2019.
Foram estabelecidos como critérios de exclusão os artigos que não contemplavam a segurança do paciente como abordagem central, tais como: os que focalizavam principalmente os aspectos legais, a saúde do trabalhador e a biossegurança; os artigos que envolveram outras profissões de saúde; editoriais, cartas, recomendações de órgãos/instituições, opiniões/comentários e entrevistas; e ainda, artigos duplicados que não apresentavam resumo e os inacessíveis. A leitura dos títulos e resumos foi realizada por duas pesquisadoras independentes e as dúvidas foram dirimidas por consenso entre ambas.
Os estudos incluídos foram categorizados por ano, país de publicação, método e objetivo principal. Essa última categorização, realizada pelos autores, foi feita por aproximação com os componentes do ciclo investigativo proposto pela OMS 6
Quadro 2 Ciclo de pesquisa em segurança do paciente proposto pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
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Resultados
A busca nas três bases de dados identificou 315 artigos: 95 capturados pelo MEDLINE, 21 pela BVS Regional e 199 pela Scopus. Após a exclusão de 99 artigos (86 duplicados, 7 sem resumo disponível e 6 inacessíveis), 216 artigos foram selecionados para a leitura do título e resumo. Com base nas referências encontradas, 9 artigos foram capturados, o que complementou a amostra
Figura 1 Fluxo de seleção do estudo.
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A amostra final foi composta por 91 artigos. Os países que se destacaram com maior número de publicações foram os Estados Unidos (39,3%; n = 33) e Inglaterra (31%; n = 28); Brasil, Canadá, China, Chile, Escócia, Holanda, México, Paquistão, Suécia e Suíça apresentaram apenas 1 publicação no período
Tabela 1 Estudos por país e ano de publicação.
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Tomando por base os objetivos dos estudos incluídos, categorizados pelos componentes do ciclo de pesquisa proposto pela OMS 6, observou-se que alguns deles abordaram mais de um componente. A maioria dedicou-se às fases iniciais: medir o dano (28,6%; n = 26); compreender as causas (56%; n = 51); e identificar soluções (32%; n = 30). Oito estudos (11%) tiveram por objetivo avaliar o impacto e dois (2,2%) buscaram transpor a evidência em cuidados mais seguros
Quanto ao método utilizado, dos 91 estudos incluídos, 47,3% (n = 43) usou abordagens quantitativas, destacando-se os delineamentos seccionais e de revisão retrospectiva de prontuário. Apenas 8,8% (n = 8) usaram delineamento qualitativo
Quadro 3 Características dos estudos incluídos.
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Discussão
O destaque dado à segurança do paciente odontológico
As publicações sobre a segurança do paciente em Odontologia vêm aumentando em nível global, mesmo que timidamente; Inglaterra e Estados Unidos foram responsáveis pelo maior número de estudos incluídos. Uma atenção primária em saúde (APS) forte, como é o caso do contexto inglês, e o pioneirismo estadunidense em instituições engajadas na melhoria da qualidade do cuidado de saúde podem explicar esses achados.
Especificidades da área podem apontar motivos para o baixo número de estudos: (i) procedimentos, em geral, menos invasivos que os médico-cirúrgicos, consequentemente, propensos a danos menos graves; (ii) as complicações odontológicas muitas vezes são atendidas em emergências hospitalares e o cirurgião-dentista não toma conhecimento do fato; (iii) grande parte dos atendimentos acontece no setor privado e/ou em consultórios individualizados, e o temor pelo afastamento da clientela pode limitar a explicitação do dano; e (iv) menor familiaridade com o tema nestes locais do que no ambiente hospitalar, historicamente mais afeito às campanhas, aos cursos e ao maior controle dos EA 9,13.
Entretanto, se há especificidades que podem explicar o afastamento em relação à temática, outras estabelecem desafios ao exercício da profissão que deveriam estimular a realização de estudos. Sob esse aspecto, destaca-se a predominância de procedimentos cirúrgicos e suas complicações, como sangramentos e infecções; a exposição constante à radiação ionizante; a necessidade de estar atento ao histórico de saúde dos pacientes 10.
Observou-se uma tendência semelhante entre os estudos da área de segurança do paciente odontológico e os da segurança do paciente em geral 14,15 no que diz respeito às fontes e técnicas adotadas. Os estudos iniciais, de caráter exploratório, buscaram fazer um paralelo entre a Odontologia e a segurança do paciente 9,10,16,17,18,19,20; estes vêm dando lugar a abordagens mais específicas 21,22, sugerindo maior inserção da Odontologia na multidisciplinariedade que a temática da segurança do paciente requer.
A magnitude do problema e a compreensão de suas causas
Enquanto os primeiros estudos em segurança do paciente buscaram medir incidência/prevalência dos EA para conhecer a magnitude do problema 6, na Odontologia os estudos iniciais foram destinados, para além de medir a sua frequência, a compreender as suas causas, suscitando reflexão acerca dos desafios inerentes às especificidades da prática odontológica.
Na perspectiva de medir a incidência/prevalência dos danos, os estudos 12,21,23,24,25,26,27,28,29,30,31,32,33,34,35,36,37,38,39,40,41,42,43 trouxeram achados que vão desde complicações por anestesia local/sedação, lesões produzidas em língua e lábios, até a perda de dentes por exodontia trocada, lesões oculares e mesmo o óbito; incidentes relacionados a alergias, infecções, atraso ou falha de diagnóstico, falha no procedimento, entre outros. Porém, como bem colocaram Ensaldo-Carrasco et al. 35, as evidências obtidas ainda são consideradas frágeis para fornecer estimativas confiáveis sobre a incidência e frequência desses eventos.
No esforço de caracterizar never events odontológicos, definidos como incidentes que resultaram em óbito ou deficiência significativa para o paciente e que nunca deveriam ocorrer 44, três estudos utilizaram metodologia qualitativa e trouxeram classificações distintas 44,45,46. A proposta de Renton & Sabbah 44 tomou por base a lista de never events do Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido (NHS), atualizada em 2015/2016. A de Black & Bowie 45 refinou 507 sugestões de 250 cirurgiões-dentistas por meio do método Delphi modificado. Ensaldo-Carrasco et al. 46 também usaram o método Delphi modificado, mas se apoiaram na literatura para criar a lista inicial de never events que foi refinada por 41 especialistas de países diversos.
Para investigar a evitabilidade dos EA, Pérez Gómez et al. 41 analisaram 595 prontuários encontrando 36 EA; destes, 21 (58%) foram considerados evitáveis. O estudo de Mettes et al. 24 identificou um total de 46 EA odontológicos, dos quais 39% foram considerados evitáveis. Esses autores inferiram que, apesar do percentual relativamente baixo de EA evitáveis sugerir segurança na prática odontológica, a baixa qualidade dos registros somada à subjetividade do conceito de evitabilidade podem implicar subestimação da medida. Tal situação suscita uma análise crítica, em especial quando se contrasta os estudos citados com outros dois: o de Huertas et al. 39 em que das 227 queixas de pacientes analisadas, 43 foram classificadas como EA, 42 (98%) evitáveis; e o de Pesántez Alvarado et al. 40 em que, dentre 1.062 histórias clínicas analisadas de pacientes que passaram por procedimentos cirúrgicos, 11 EA foram identificados, sendo 9 (82%) classificados como evitáveis.
Com enfoque na compreensão das causas, dentre os fatores contribuintes ao cuidado inseguro, foram identificados os erros de diagnóstico e/ou de planejamento, a comunicação ineficaz, a falha na execução de procedimentos, a baixa adesão a protocolos e a anamnese insuficiente 25,33,39,43,47,48. Esses fatores foram descritos como falhas latentes ou ativas. Obadan et al. 31 analisaram hipoteticamente a ingestão acidental de corpos estranhos e apontaram como possibilidade de falhas latentes a baixa capacidade clínica, o treinamento inadequado e a manutenção deficiente de equipamentos; e como falha ativa a proteção inadequada das vias aéreas do paciente.
Os EA decorrentes do circuito de medicamentos, que incluem a prescrição, a dispensação e a administração destes, são amplamente evidenciados na literatura científica. No contexto da APS, a prescrição medicamentosa foi referida como uma das principais causas para a ocorrência de EA 49, o que vai ao encontro do objeto de um dos primeiros estudos incluídos: a prescrição medicamentosa em Odontologia 50.
Estudos demonstraram a necessidade de atenção voltada ao uso de medicamentos e outras substâncias. O açúcar presente em muitos medicamentos pode atuar como fator coadjuvante da cárie, particularmente em pacientes com dificuldade de deglutição 51; medicamentos utilizados para perder peso 52, suplementos dietéticos 53 e vitamínicos 54 foram também destacados, sugerindo que o profissional considere estas condições a fim de elaborar uma proposta de intervenção segura, centrada no paciente.
Outra preocupação é a associação de EA às tecnologias empregadas no cuidado odontológico 55,56. Nessa linha, Hebballi et al. 32 analisaram os relatórios de incidentes com dispositivos sanitários notificados à Agência de Administração de Alimento e Drogas dos Estados Unidos (FDA) em 2011. Os resultados mostraram que, de um total de 1.978.056 relatórios, 28.046 (1,4%) foram associados aos dispositivos dentários. Uma parte (2.942) foi excluída por não fornecer informações adequadas. Dos relatórios analisados, 17.261 foram relacionados a lesões, 7.777 ao mau funcionamento do dispositivo e 66 ocasionaram óbitos. Desses, 52 estavam claramente associados ao dispositivo dentário.
É importante destacar que os fatores contribuintes não são associados somente ao paciente, mas aos prestadores do cuidado e ao ambiente de trabalho. Dentre os associados às características dos pacientes são exemplos: as incapacidades motoras e/ou mentais e as peculiaridades de crianças e idosos. Entre aqueles associados às condições de trabalho e ao profissional destacamos: os ambientes agitados que colaboram com distrações; a elevada rotatividade; a falta de habilidades oriundas da formação e capacitação do profissional; a visibilidade e a comunicação deficientes 57.
O treinamento é essencial para lidar com problemas com os quais os profissionais podem vir a se deparar ao longo da vida laboral 58,59,60, sendo importante incorporar o tema da segurança do paciente desde os primeiros anos de formação 61. Um estudo 39 realizado com estudantes de Odontologia apontou questões relacionadas a fatores humanos predisponentes ao EA, como a fadiga do operador, a falta de consciência dos riscos e as falhas nos encaminhamentos. Corroborando esses achados, Osegueda-Espinosa et al. 38 chamaram a atenção para a necessidade de supervisão mais ativa nos ambientes acadêmicos.
Ratifica-se a importância da formação do cirurgião-dentista para capacitá-lo a identificar urgências e situações que fogem ao seu controle, a fim de proceder a encaminhamentos adequados, como enfatizado por Al Blaihed et al. 62. Nesse estudo, os autores descreveram dificuldades dos professores em notificar incidentes cometidos por alunos; observaram que, embora houvesse relatos verbais, estes não eram registrados por escrito, denotando uma frágil cultura de segurança local.
A cultura de segurança do paciente refere-se às crenças, valores e normas partilhados entre os profissionais, que também influenciam seu comportamento e suas ações 63. No âmbito dessa revisão, estudos fizeram alusão ao tema 13,64,65 ou o tiveram como central 47,61,66,67,68,69,70,71,72,73. Nos contextos estudados foram encontrados pontos positivos, como: a elevada percepção geral de segurança do paciente; o cuidado centrado no paciente; a busca pela efetividade e equidade dos cuidados; e a valorização do trabalho em equipe. As fragilidades descritas foram: a baixa notificação de incidentes e a escassez de treinamento, o acompanhamento deficiente do paciente e a falta de apoio da liderança à segurança do paciente.
É fundamental preocupar-se também com os fatores organizacionais, como falhas no ambiente físico, agendamento e gerenciamento de pacientes, linhas de responsabilidade e a influência de políticas 35. Uma pesquisa realizada com técnicos em higiene dental evidenciou que a percepção destes em relação à segurança do paciente é inversamente proporcional ao número de horas trabalhadas e ao número de pacientes atendidos 73.
Há evidências de que profissionais envolvidos em EA podem sofrer emoções que afetam o seu desempenho e a sua saúde, podendo levar ao abuso de substâncias e à depressão 74. O apoio da organização ao profissional envolvido em EA, também denominado “segunda vítima”, integra questões importantes para a segurança do cuidado. O apoio não punitivo frente à ocorrência de incidentes de segurança e EA, bem como a simplificação dos sistemas de notificação são medidas que auxiliam nesse caminho 70,75. Para permitir uma compreensão aprofundada do problema do EA, é necessário aliar o conhecimento técnico dos profissionais aos seus aspectos cognitivos e comportamentais 76.
Por fim, a implantação de políticas e monitoramentos periódicos do cumprimento de diretrizes da prática clínica e protocolos de segurança 77 é necessária. A indisponibilidade de leis e/ou regulamentações nacionais relativas à segurança dos pacientes odontológicos aponta para uma baixa conscientização social do problema 67.
As soluções identificadas e sua contribuição para a melhoria da segurança clínica
Os estudos voltados para a segurança nos procedimentos cirúrgicos receberam destaque, possivelmente por sua natureza mais invasiva. Um deles 78 trouxe o processo de marcação do sítio cirúrgico como oportunidade de comunicação entre pacientes e profissionais, possibilitando reduzir a chance de erros como, por exemplo, a exodontia trocada, o que é uma grande preocupação 44,79.
A melhoria da comunicação suscitou o desenvolvimento de um quadro expositivo para o ambiente hospitalar. Nele, os profissionais lançavam os eventos inseguros ocorridos durante a rotina de atendimento odontológico, o que contribuiu para a discussão periódica de melhoria da qualidade realizada pela equipe 64.
Para melhorar a segurança anestésica, o monitoramento adequado e uma equipe altamente treinada foram apontados como primordiais 80,81. Além disso, uma revisão sistemática sugeriu a adição rotineira da capnografia ao monitoramento padrão de adultos durante a sedação moderada 22.
As listas de verificação foram consideradas eficazes na melhoria dos processos de trabalho, na otimização da comunicação e na redução dos níveis de estresse em cirurgias 78,81,82,83,84,85,86. Elas também se mostraram úteis no apoio ao diagnóstico do câncer 87 e para o fortalecimento da cultura de segurança 88.
Para o tratamento endodôntico, além de uma lista de verificação 89, foi proposta a adoção de protocolo para amenizar possíveis ocorrências de incidentes com energia ultrassônica 55 e a utilização de diques de borracha 90,91. Esse último é um dispositivo que isola o elemento dentário para o procedimento endodôntico e evita incidentes, como a aspiração e/ou deglutição de artefatos.
Como soluções apresentadas para prevenir os EA relacionados ao circuito de medicamentos, Skaar & O'Connor 92 destacaram a necessidade de aumentar o conhecimento dos cirurgiões-dentistas em relação aos medicamentos prescritos e suas interações. Donaldson & Goodchild 93 enfatizaram a importância da orientação desses profissionais quanto ao uso de antagonistas farmacológicos para ajudar a mitigar emergências médicas induzidas por medicamentos.
Por sua vez, Noguerado et al. 94 propuseram um guia para a prescrição medicamentosa às grávidas e lactantes e Hussein et al. 95 sugeriram um conjunto de indicadores para melhorar a qualidade na prescrição. Importa ressaltar que muitos erros de medicamentos ocorrem devido a falhas que poderiam ser facilmente evitadas, entre as quais são exemplos: a baixa adesão a protocolos e a realização de prescrições ilegíveis 96. As atividades clínicas em uma universidade devem representar o padrão-ouro do desempenho profissional 97 e a implantação de programas educacionais poderia beneficiar o desenvolvimento necessário de habilidades de prescrição do cirurgião-dentista 98,99.
Metodologias voltadas à melhoria da qualidade tendem a favorecer a segurança do paciente 29,97. A auditoria clínica, por exemplo, consiste em uma ferramenta útil principalmente quando: (i) é estruturada formal e continuamente, com horário regular de reuniões e eventos com permissão de comunicação direta vertical e horizontal; (ii) é realizado o treinamento de um número significativo de funcionários; (iii) é alinhada de acordo com as prioridades locais; (iv) há acompanhamento de todas as suas fases (registro, coleta de dados, análise de dados e relatório); (v) há monitoramento atempado de cada recomendação no plano de ação e sua conclusão se efetiva antes do próximo ciclo de auditoria a ser executado 100.
Outra ferramenta disponível é a análise de risco. Para o caso de pacientes com necessidades motoras e/ou cognitivas que necessitam de cuidados específicos, Perea-Pérez et al. 57 propuseram uma análise de riscos própria. Essa considera os riscos relacionados aos pacientes e os associados aos profissionais e ao ambiente de saúde.
As notificações de incidentes constituem uma excelente fonte de aprendizagem organizacional e servem de substrato para a elaboração de estratégias e intervenções de melhoria da segurança do paciente 28. Autores que utilizaram bases de dados mistas, ou seja, que envolveram notificações relativas às áreas de saúde em geral, sugeriram que um sistema de notificação específico para pacientes odontológicos poderia facilitar tanto a notificação quanto a posterior análise destes eventos 12.
Faz-se necessário, entretanto, o desenvolvimento de políticas institucionais para reduzir barreiras que dificultam a notificação por parte dos profissionais 12,66,75 e o envolvimento do paciente e seus familiares, estimulando-os ao relato de danos 101. Torna-se oportuno, ainda, em âmbito mais abrangente dessas políticas, aumentar a conscientização da população acerca do problema 102.
Muitos EA poderiam ser evitados mediante a manutenção de prontuários precisos 103. O consentimento informado, anexado aos registros do prontuário, comprovou ser valioso por colocar o paciente na centralidade das decisões terapêuticas 104. Além disso, agregar ao prontuário fotografias e radiografias que registram situações relativas à ocorrência de incidentes, bem como resultados de exames laboratoriais, podem ser de grande utilidade na análise e avaliação de EA 41.
Todavia, a segurança do paciente em Odontologia é multifatorial e complexa 9. As soluções apresentadas pressupõem forte atuação organizacional e trabalho em equipe. Tais condições estruturantes nem sempre são favoráveis, seja pelas características inerentes à prestação do cuidado odontológico em si, seja por outros fatores organizacionais.
Fica, portanto, explícita a necessidade de envidar esforços na pesquisa em segurança do paciente na Odontologia, com o objetivo de auxiliar a sistematização e organização da prestação dos cuidados e colaborar com a redução dos EA na área.
Limitações do estudo
A revisão integrativa constitui uma ferramenta importante por permitir a análise da literatura de forma ampla e sistemática. Entretanto, os termos da busca nas bases de dados bibliográficos contemplaram apenas os idiomas inglês, português e espanhol, o que pode ter reduzido o número de artigos capturados. Outra limitação relacionada aos termos usados na busca diz respeito a não inclusão do termo MeSH adverse events, amplamente utilizado para indexar publicações na área de segurança do paciente. Para mitigar essa questão, os autores ampliaram a busca para além dos termos MeSH usados, incluindo o termo patient safety em títulos e resumos, o que propiciou capturar estudos publicados a partir de 2005. A utilização de apenas três bases de dados bibliográficos pode também ter incorrido em viés, embora os autores considerem que as mesmas reúnem produção científica expressiva da área da saúde. Na busca bibliográfica, 13 artigos foram excluídos. Desses, 7 não apresentaram resumo disponível e 6 eram inacessíveis. Logo, potenciais achados desses estudos não foram incluídos nesta revisão. Na tentativa de minimizar esses vieses, nove artigos foram incluídos com base na análise das referências dos artigos capturados.
Conclusão
As publicações demonstraram que a Odontologia está evoluindo no sentido de um melhor conhecimento em relação aos aspectos da segurança do paciente, principalmente nos países desenvolvidos. A possibilidade de reunir estudos com metodologias e objetivos diversos contribuiu para descrever sua atual inserção na temática, e possibilitou identificar uma gama de proposições para a melhoria da segurança do cuidado.
A complexidade do atendimento em saúde compreende fatores inerentes ao ambiente e à ação humana que, em Odontologia, amplificam as chances de ocorrência de EA mediante uma atuação solitária e fragmentada. A conformação de um ambiente favorável à segurança do paciente odontológico exige o engajamento da universidade, indústria, gestão dos serviços, juntamente com profissionais do atendimento direto, pacientes e seus familiares. Nesse sentido, os estudos qualitativos, apesar de poucos nesta revisão, se mostraram bastante úteis.
Como em outros ofícios que são frutos diretos do trabalho humano, o resultado do atendimento é dependente do profissional executante. Assim, a capacitação e o treinamento, a ergonomia, o tempo de atendimento suficiente, além de insumos operacionais apropriados, foram apontados como primordiais para aproximar o trabalho real do idealizado e reduzir o risco da ocorrência de danos aos pacientes em Odontologia.
Ao observar a evolução das pesquisas de acordo com os componentes do ciclo proposto pela OMS, verificou-se que os estudos dedicados à primeira fase, ou seja, medir o dano, não constituíram a maioria. Os principais EA em Odontologia foram identificados: lesões em tecidos duros e moles da cavidade oral, com destacada atenção à possibilidade de exodontias trocadas; alergias, complicações anestésicas e infecções, circunstâncias que, se agravadas, podem inclusive levar ao óbito. Compreender as causas da ocorrência de EA e identificar soluções para evitá-los foram consonantes a muitos estudos, representando o esforço para mitigar o problema.
Dentre os fatores contribuintes descritos, listou-se: falhas no planejamento e na gestão do cuidado, comunicação ineficaz, uso inadequado de tecnologias, deficiências na formação, e cultura de segurança fragilizada. As propostas de instrumentos e métodos apresentadas para diminuir o impacto desses problemas carecem de estudos de avaliação adicionais.
Por fim, apenas dois estudos classificados na última fase do ciclo transpõem para a prática medidas avaliadas como de impacto positivo para a melhoria da segurança do paciente. Esses achados confirmam a inserção da Odontologia na área, mas evidenciam um longo caminho a percorrer, denotando campo fértil para a realização de pesquisas a fim de contribuir para melhorar a qualidade e a segurança no cuidado odontológico.
Referências
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