Cadernos de Saúde Pública
ISSN 1678-4464
36 nº.Suplemento 3
Rio de Janeiro, 2020
COMUNICAÇÃO BREVE
Iniciativa ELSI-COVID-19: metodologia do inquérito telefônico sobre coronavírus entre participantes do Estudo Longitudinal da Saúde dos Idosos Brasileiros
Maria Fernanda Lima-Costa, James Macinko, Fabiola Bof de Andrade, Paulo Roberto Borges de Souza Júnior, Maurício Teixeira Leite de Vasconcellos, Cesar Messias de Oliveira
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311X00183120
COVID-19; Coronavírus; Idoso; Inquéritos Epidemiológicos
Introdução
A pandemia de COVID-19, causada pelo vírus SARS-CoV-2, é uma emergência global em saúde pública para a qual temos mais perguntas do que respostas. Desde o reconhecimento da transmissão comunitária no Brasil, em 20 de março de 2020, houve um aumento exponencial de casos confirmados e de óbitos, sem sinais de arrefecimento da epidemia 1. A disseminação do vírus foi tão rápida que, em 9 de junho de 2020, o Brasil ocupava a segunda posição no mundo em termos de número de casos confirmados (707.412) e de óbitos (52.771) (Johns Hopkins University & Medicine. COVID-19 Dashboard by the Center for Systems Science and Engineering (CSSE) at Johns Hopkins University. https://coronavirus.jhu.edu/map.html, acessado em 09/Jun/2020).
Globalmente, o COVID-19 afeta mais severamente os adultos mais velhos e aqueles com condições crônicas preexistentes 1 (https://coronavirus.jhu.edu/map.html, acessado em 09/Jun/2020). Além dos fatores biológicos inerentes à idade, os comportamentos em saúde e os fatores socioeconômicos e ambientais parecem também afetar os determinantes e as consequências da pandemia. Esses fatores podem atuar diretamente, aumentando o risco de infecção ou a suscetibilidade individual à SARS-CoV-2 ou, indiretamente, piorando as condições crônicas preexistentes ou aumentando o risco de novas doenças. Em relação aos fatores socioambientais, parte significativa da população brasileira vive em áreas com saneamento inadequado e grande densidade populacional, aumentando os riscos de suscetibilidade e de transmissão 2.
Entre adultos mais velhos, existem fatores que podem impactar direta ou indiretamente os riscos relacionados à epidemia, tais como: (1) condições crônicas que requerem monitoramento regular e uso de medicamentos 3,4,5; (2) limitação funcional, que pode variar desde a necessidade de ajuda na compra de itens básicos, como alimentos e medicamentos, até a necessidade de ajuda para realização de atividades relacionadas à sobrevivência, como alimentar-se, vestir-se e tomar banho 6,7,8; e (3) dificuldades no uso de novas tecnologias que permitem contato virtual com familiares e amigos que, por sua vez, têm o potencial de melhorar a saúde mental, reduzindo o sentimento de solidão, os problemas do sono e a depressão 9,10. Além disso, dificuldades para o uso de serviços de saúde ou acesso a medicamentos durante a epidemia têm o potencial de agravar condições físicas e mentais preexistentes 11.
O Estudo Longitudinal da Saúde dos Idosos Brasileiros (ELSI-Brasil) é um estudo de coorte, de base domiciliar, que tem como objetivo examinar o processo de envelhecimento, seus determinantes e consequências para os indivíduos e a sociedade 8. Por ser um estudo conduzido entre adultos mais velhos, ele representa uma oportunidade para obter informações sobre a epidemia de SARS-CoV-2 e suas consequências para essa população. Com base nessa premissa, foi implementada a iniciativa ELSI-COVID-19, baseada em entrevistas telefônicas dos participantes da coorte. O objetivo dessa comunicação breve é descrever a metodologia dessa iniciativa e examinar sua validade externa no que se refere a características sociodemográficas dos participantes do estudo.
Métodos
Delineamento do estudo
O ELSI-Brasil é uma coorte de base populacional conduzida e amostra representativa da população brasileira com 50 anos ou mais. O estudo adota um delineamento complexo da amostra, baseado em estágios de seleção, combinando municípios, setor censitário e domicílio. A amostra final incluiu 70 municípios situados nas cinco diferentes regiões do país. Após o inquérito da linha de base, a coleta de dados está prevista a cada 3-4 anos, com reposição da amostra a cada onda.
O inquérito da linha de base do ELSI-Brasil foi conduzido entre 2015 e 2016, e a amostra final incluiu 9.412 participantes com 50 anos ou mais. As informações da linha de base incluíram entrevista domiciliar (características do domicílio e condição econômica de todos os residentes); entrevista individual (características demográficas, saúde e condições relacionadas e uso de serviços de saúde, entre outras); medidas físicas (antropometria, pressão arterial e função física); e coleta de sangue e armazenamento de alíquotas em uma subamostra dos participantes. Mais detalhes podem ser vistos em outra publicação 8. Os questionários e outros instrumentos da pesquisa podem ser vistos na homepage do ELSI-Brasil (http://elsi.cpqrr.fiocruz.br/).
A segunda onda de pesquisa iniciou-se em agosto de 2019, mas foi interrompida em 17 de março de 2020, devido à pandemia de SARS-CoV-2. A decisão de suspender a coleta de dados foi guiada por aspectos éticos, para evitar a possível transmissão de vírus durante a visita domiciliar, uma vez que a amostra ELSI-Brasil é composta por pessoas mais velhas. Até sua interrupção, 9.177 participantes foram entrevistados e tiveram suas medidas físicas aferidas, adotando-se os mesmos instrumentos e procedimentos de pesquisa adotados no inquérito da linha de base da coorte.
Entrevista telefônica ELSI-COVID-19
Todos os participantes da segunda onda do ELSI-Brasil foram elegíveis para a entrevista por telefone. A entrevista foi planejada para ser curta, com duração de cerca de cinco minutos. A entrevista incluiu perguntas sobre adesão a medidas preventivas (distanciamento social, uso de máscaras faciais e higienização das mãos), motivos para sair de casa, dificuldades para obter medicamentos, diagnóstico médico para COVID-19 e realização de exames específicos, uso de serviços de saúde (procura recente, local da procura e local onde foi atendido, entre outros aspectos) e saúde mental (sono, depressão e solidão). Foi utilizada uma versão eletrônica do questionário, e as respostas foram enviadas em tempo real para a central da pesquisa, utilizando-se protocolos de criptografia de dados. As ligações telefônicas foram realizadas por entrevistadores treinados, de preferência aqueles que realizaram a entrevista da segunda onda. Quando necessário, a entrevista foi respondida por um substituto, e essa condição foi devidamente anotada. Foram consideradas recusas aquelas situações nas quais o participante se recusou a participar da primeira ligação ou quando cinco ligações em diferentes dias e horários não foram atendidas. O controle de qualidade foi realizado por meio de ligações telefônicas para uma subamostra de participantes. Para aumentar a taxa de resposta, uma carta ou mensagem de texto via SMS foi enviada para todos os elegíveis, antes da entrevista por telefone. Um número gratuito e uma explicação na página principal do ELSI-Brasil (http://elsi.cpqrr.fiocruz.br/) foram utilizados para fornecer explicações adicionais aos participantes. A primeira entrevista por telefone foi realizada entre 26 de maio e 8 de junho de 2020. Duas entrevistas de seguimento estão planejadas para ocorrer nas oito e nas dezesseis semanas subsequentes.
O ELSI-Brasil e a iniciativa ELSI-COVID-19 foram aprovados pelo conselho de ética da Fiocruz, Minas Gerais (CAAE: 34649814.3.0000.5091 e CAAE: 33492820.3.0000.5091, respectivamente).
Análise estatística
Como o ELSI-Brasil adota um delineamento de amostra complexa, as análises devem considerar os pesos dos indivíduos e o delineamento da amostra. Os pesos para análise dos dados da entrevista por telefone foram calculados especificamente para os participantes que responderam a essa entrevista, considerando-se as suas idades, o sexo e o nível de escolaridade. A média natural (com base no desenho amostral) e os pesos calibrados foram: 5,428,7 (erro padrão - SE = 82,7) e 8,783,7 (SE = 179,1) para o primeiro estrato; 6,071,7 (SE = 138,0) e 9,597,0 (SE = 228,3) para o segundo; 7,845,7 (SE = 203,4) e 11,492,0 (SE = 352,0) para o terceiro; e 4,345,1 (SE = 63,9) e 6,747,9 (SE = 126,2) para o quarto. Para avaliar a representatividade da amostra da entrevista por telefone, algumas características sociodemográficas dos participantes foram comparadas àquelas dos participantes com 50 anos ou mais da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), realizada por meio de entrevista face a face no quarto trimestre de 2019 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) 12.
Resultados
Entre os 9.177 participantes da 2ª onda do ELSI-Brasil, 6.149 (67%) responderam à entrevista telefônica. As perdas foram devidas a óbitos (n = 120), hospitalizações ou institucionalizações (n = 6), recusa em fornecer informações por telefone (n = 109), ligações não atendidos após cinco tentativas (n = 913) e, por último, devido a um número de telefone inválido ou ausente (n = 1.880). A
Figura 1 Mapa do Brasil mostrando os municípios participantes do inquérito telefônico Estudo Longitudinal da Saúde dos Idosos Brasileiros (ELSI-COVID-19), maio-junho, 2020.
|
A média da idade dos participantes da entrevista telefônica foi igual a 63,3 anos, e 54,4% eram mulheres
Tabela 1 Características sociodemográficas dos participantes com 50 anos ou mais das entrevistas telefônicas do Estudo Longitudinal da Saúde dos Idosos Brasileiros (ELSI-COVID-19) comparadas às características da Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílio Contínua (PNAD Contínua, 2019).
|
Discussão
A iniciativa ELSI-COVID-19 está aninhada em uma coorte de base populacional, com o objetivo de examinar os determinantes e consequências da pandemia de SARS-CoV-2 entre adultos brasileiros mais velhos. Uma das principais vantagens dessa iniciativa é a oportunidade de utilizar uma ampla gama de informações já coletadas, em período imediatamente anterior ao início da epidemia, permitindo comparações com os dados coletados durante a epidemia. Outra vantagem é o grande número de participantes residentes em diferentes municípios de todas as principais regiões geográficas do Brasil.
As limitações da iniciativa ELSI-COVID-19 são aqueles inerentes às pesquisas realizadas por telefone. Essas limitações incluem o não atendimento às chamadas, a recusa a fornecer informações por essa via e números de telefones incorretos ou inexistentes, como observado na presente iniciativa. Nossa taxa de resposta à entrevista telefônica foi de 67%, ligeiramente superior à entrevista telefônica da PNAD Contínua, realizada em abril de 2020 (60,2%) 13. Para compensar a não resposta, nós utilizamos pesos especificamente derivados para os respondentes à entrevista telefônica. Utilizando-se esses pesos e os parâmetros amostrais, a distribuição da população do estudo foi muito semelhante àquela da população brasileira com 50 aos ou mais, conforme resultados da pesquisa domiciliar conduzida pela IBGE no 4º semestre de 2019 12. Entretanto, não é possível descartar a possibilidade de viés devido a outros fatores não considerados na nossa iniciativa.
A iniciativa ELSI-COVID-19 tem grande potencial. Outras duas entrevistas por telefone estão planejadas para ocorrer nos próximos meses, possibilitando investigações sobre mudanças nos comportamentos preventivos e outros aspectos relacionados à SARS-CoV-2 durante a evolução da pandemia. A terceira onda da coorte ELSI-Brasil está planejada para ser realizada daqui a três anos (2023), por meio de entrevistas face a face, realização de medidas físicas e coleta de amostras de sangue. Isso permitirá examinar as consequências da pandemia para adultos mais velhos no longo prazo, bem como estimar a prevalência de infecção por SARS-CoV-2 na nossa amostra. Também é importante destacar que o ELSI-Brasil emprega o mesmo marco conceitual e instrumentos de outros grandes estudos longitudinais sobre o envelhecimento em diferentes países 8. Um desses estudos, English Longitudinal Study of Ageing 14, iniciou recentemente sua pesquisa on-line sobre a COVID-19, e espera-se que outros estudos sigam a mesma iniciativa. Isso nos permitirá comparar os dados brasileiros com a experiência de outros países.
Em conclusão, ainda não se sabe como a pandemia de SARS-CoV-2 evoluirá em diferentes contextos sociais e econômicos. É possível que ondas sucessivas da infecção ocorram até a descoberta de uma vacina eficaz. As informações baseadas em evidências científicas são cruciais para orientar medidas preventivas e para mitigar o impacto do COVID-19 na população. A iniciativa ELSI-COVID-19 contribuirá para uma melhor compreensão do padrão da pandemia e seus determinantes entre adultos mais velhos em uma nação tão desigual como o Brasil.
Agradecimentos
A linha de base ELSI-Brasil e a segunda onda foram apoiadas pelo DECIT/SCTIE (processo 404965/2012-1 e 28/2017); COSAPI/DAPES/SAS (concede 20836, 22566, 23700 e 77/2019). O ELSI-COVID-19 é financiado pelo DECIT/SCTIE e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq (processo nº 403473 / 2020-9). Maria Fernanda Lima-Costa é bolsista do CNPq.
Referências
This is an open-access article distributed under the terms of the Creative Commons Attribution License
Cadernos de Saúde Pública | Reports in Public Health
Rua Leopoldo Bulhões 1480 - Rio de Janeiro RJ 21041-210 Brasil
Secretaria Editorial +55 21 2598-2511.
cadernos@fiocruz.br